A nostalgia do jogador na era digital
Texto: JOSÉ RAPOSO
O regresso de Steven Spielberg à ficção cientifica e ao mundo da fantasia é uma súmula daquilo que boa parte da indústria tem vindo a fazer nas últimas décadas. Filme assombrado pela cultura popular enquanto Olimpo do imaginário coletivo, o seu horizonte é o de um cinema enquanto forma absoluta de entretenimento: uma arte industrializada, pautada pela atração cinética da coregrafia de corpos no espaço, um espaço que progressivamente se tem vindo a tornar virtual, imersivo, totalitário. Um dos aspectos mais marcantes do filme, que adapta para o grande ecrã um romance homónimo de autoria de Ernest Cline, passa pelo cruzamento de duas linguagens historicamente paralelas, e que no contexto de Ready Player One – Jogador 1 parecem estar no campo oposto do chamado “mundo real”: por um lado a história dos videojogos (de Halo a Street Fighter, mas também marcam presença alusões a videojogos de tempos mais antigos); e, por outro, a história do cinema (de Kubrick a John Hughes, as referências são abundantes e sempre em modo piscadela-de-olho relativamente a um certo cânone).
Como tem vindo a ser assinalado, e um pouco à luz desse aparente confronto com as circunstâncias materiais do momento histórico em que decorre a ação (o ano é o de 2045), não deixará de ser sintomático (para não dizer mesmo decisivo) ser uma figura como Steven Spielberg a trazer para o cinema uma obra que se lança no jogo da recontextualização de um sem fim de referências-chave da cultura popular. O mesmo Spielberg realizador de Parque Jurássico, cujos dinossauros a dada altura figuram numa das múltiplas sequências de perseguição, o mesmo Spielberg produtor de Regresso ao Futuro, filme que transformava um DeLorean numa máquina capaz de viajar no tempo, e que também aqui tem direito ao seu breve cameo, como se acabado de sair da mesa de operações de um pós-modernismo muito malandro e com alguma graça – logo numa das sequências iniciais esse mesmo DeLorean aparece com as luzes vermelhas de desenho futurista do célebre “carro inteligente” da série de culto Knight Rider. A traçar paralelo entre Spielberg e outro personagem dentro do imaginário do próprio filme, poderíamos estabelecer comparações com James Halliday, um dos criadores do universo virtual imersivo chamado OASIS, plataforma crucial para o desenrolar da ação.
É Halliday, figura reclusa e com dificuldade em lidar com as emoções do mundo das pessoas de carne e osso (uma espécie de Steve Jobs dos videojogos) que desenvolve esse OASIS, um vasto mundo online programado à volta dos seus artefactos culturais favoritos, uma criação virtual que para muitos milhões de habitantes do planeta se converteu numa realidade mais desejada que a do mundo real. Trata-se de uma narrativa onde algumas das ansiedades do mundo contemporâneo se manifestam de forma particularmente acentuada, ainda que em resultado do esquematismo da exposição inicial (para mais, com a mão pesada de um voice over) esse lado eventualmente mais crítico (ainda que frequentemente apenas no domínio das “boas intenções”) acabe por ficar relegado para um segundo plano – este é, em todo um caso, um futuro marcado pela catástrofe ambiental e pelo urbanismo caótico, desordenado, sobrepovoado. Antes de morrer, Halliday cria um novo jogo dentro do OASIS que tem por fim encontrar um sucessor ao seu legado: quem encontrar o “Ovo da Páscoa” meticulosamente escondido naquele mundo, passará a ser o dono de todo aquele universo. Nesse passar de testemunho, e aqui não será realmente difícil encontrar algumas semelhanças com a figura do próprio Spielberg, há qualquer coisa muito próxima daquilo que poderíamos designar por “redenção”: Halliday acabará por reconhecer que a sua criação também dificulta a relação entre pessoas, justamente pelo afastamento muito real que provoca.
O fundamental do enredo é, pois, centrado na busca desse “Santo Graal” da era digital, com Spielberg a acompanhar de muito perto as aventuras e obstáculos que se cruzam no caminho de um grupo de jovens. É tudo contado a um ritmo francamente acelerado, como se a vertigem da ação non-stop dos videojogos se tivesse tornado na língua franca do desencadear de uma trama narrativa. Por tudo isto, não se pode deixar de olhar para este Ready Player One – Jogador 1 como uma espécie de buffet-pronto-a-comer-da-nostalgia, sendo nisso aliás um dos pontos mais altos da atual corrente de produção que reconhece na memória afetiva coletiva (sobretudo das décadas dos anos 1970 e 1980) uma importante fonte de inspiração criativa. Uma das questões fundamentais – e que Spielberg parece estar pouco interessado em querer problematizar – está na homogeneização dos referentes culturais (quase infinitos, muitíssimo exaustivos – há aqui citações para todos os gostos). The Shinning, filme maior do cinema contemporâneo, é aqui evocado numa relação de paridade relativamente a Adventure, uma obra histórica no contexto dos videojogos. É essa dimensão mais totalitária que surge aqui implicada quando se fala de uma imersão absoluta na realidade virtual – já não estamos perante universos estéticos autónomos que são mobilizados para o “interior” desse espaço (distópico) onde tudo é possível de todas as maneiras, mas de marcas que valem aquilo que valem porque movimentam uma economia de muitos milhões. Se The Shinning e Adventure partilham o mesmo território, isso parece dever-se ao facto de terem perdido a capacidade em encetar um dialogo critico com o mundo que representam. Em Ready Player One: Jogador 1 esse território é o território do entretenimento, e dentro das suas fronteiras respira-se o ar da alienação.
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