Os 10 melhores filmes de John Carpenter
Seleção e textos: NUNO CARVALHO
1.º Veio do Outro Mundo (1982)
É a obra-prima de John Carpenter. Este remake de The Thing from Another World (1951), de Howard Hawks (herói artístico do cineasta), por intermédio da sua fonte primordial (a novela de 1938 de John W. Campbell Who Goes There?) tem algumas similitudes com Alien – O Oitavo Passageiro (1978), de Ridley Scott (mas pode também ser comparado, num sentido inesperado, com o Shining de Kubrick, na medida em que retrata um cenário de isolamento e claustrofobia que conduz à loucura – em The Thing essa loucura manifesta-se através do clima de paranoia que o organismo alienígena instiga). A lição fundamental deste thriller sobre um parasita extraterrestre que mimetiza o seu hospedeiro e que cria um clima de terror numa equipa de uma base de pesquisa científica na Antártida está condensada na frase promocional do filme: “Man is the warmest place to hide.” Ou como o humanismo pode ser uma grande armadilha para o homem perante a gélida e impostora natureza do mal, sempre capaz de medrar mais eficazmente quando encontra um ambiente propício de cálidas ilusões de humanidade.
2.º Halloween (1978)
Rodado em 21 dias (por cerca de 300 mil dólares), Halloween (O Regresso do Mal, na versão portuguesa) lançou uma autêntica onda de slashers de baixo custo que procuraram imitar a matriz original. Michael Myers é uma das criações mais assustadoras do cinema de terror (uma encarnação do “puro mal”, como diz a personagem de Donald Pleasence, o médico que conhece realmente o monstro). Com uma máscara branca e totalmente inexpressiva (que esconde um rosto também sem emoção), Meyers é uma assombração medonha, um psicopata que na infância matou friamente a irmã e que escapa do hospital psiquiátrico onde esteve preso durante longos anos para regressar à cidade de Haddonfield e matar adolescentes sexualmente ativos. É claro que há um fundo moralista neste subgénero, que consiste em fazer sobreviver ou restar como última sobrevivente a rapariga virgem e reservada (neste caso, Jamie Lee Curtis, a filha da mítica Janet Leigh que morre logo no início do Psico de Hitchcock), mas a atmosfera de medo que consegue criar é bastante memorável, contando também para tal com uma banda sonora minimalista mas tensa da autoria do próprio Carpenter.
3.º Nova Iorque 1997 (1981)
Depois de o Nevoeiro abrir a década mais produtiva de John Carpenter, Nova Iorque 1997, o filme imediatamente posterior, e o grande sucesso da carreira de um dos maiores cineastas americanos vivos (e também um campeão da subestimação), expõe com extrema vitalidade a pulsão anárquica e antissistema que caracteriza a sua obra. Snake Plissken (Kurt Russell), o protagonista, é um anti-herói e um outsider com uma visão cínica da sociedade e que, na sua temível e extraordinária condição de soldado das forças especiais que se transformou em condenado, é recrutado pela polícia de Nova Iorque para cumprir a missão de resgatar o presidente americano, depois de o Air Force One, desviado por piratas do ar, se ter despenhado na ilha de Manhattan, agora transformada numa prisão de alta segurança de um Estado policial. Tal como Halloween foi seminal e original (criou uma descendência de slashers), Nova Iorque 1997 exerceu considerável influência sobre algum do cinema da década de 80, sendo também reconhecido por William Gibson como fonte de inspiração para o romance pioneiro do cyberpunk Neuromancer.
4.º Assalto à 13.ª Esquadra (1976)
Tendo como principal matriz Rio Bravo, de Howard Hawks, Assalto à 13.ª Esquadra (Assault on Precint 13, no original) é uma espécie de neo-western cuja ação se reatualiza no contexto de um cerco, levado a cabo por um gangue multicultural, a uma esquadra da polícia de uma zona pobre da cidade de Anderson, na Califórnia, que está em processo de deslocalização e “desarmada” por estar prestes a ser fechada. Mas, além de uma releitura moderna do western, a segunda longa-metragem de John Carpenter enquadra-se também no subgénero blaxploitation pelo facto de o protagonista ser negro. De resto, o realizador expressa a sua admiração por George A. Romero e o seu A Noite dos Mortos-Vivos não só por entregar o papel do tenente da polícia a um ator negro mas também ao imaginar o gangue que avança impiedosamente sobre a esquadra como uma horda de zombies. Carpenter lança aqui as bases de alguns temas que seriam recorrentes na sua filmografia, como a relativa impotência da autoridade (que, neste caso, tem de se socorrer de três reclusos para garantir a sua defesa) ou o mal implacável, incontrolável e impossível de rastrear e deter de acordo com as leis benignas e idealistas da civilidade.
5.º O Nevoeiro (1980)
O Nevoeiro é o terceiro de uma sequência de cinco grandes filmes consecutivos de John Carpenter (composta também por Assalto à 13.ª Esquadra, Halloween, Nova Iorque 1997 e Veio do Outro Mundo), um feito que muito poucos realizadores conseguiram na história do cinema. Com um elenco em que se destacam Adrianne Barbeau, Jamie Lee Curtis, Janet Leigh e Hal Holbrook, este thriller fantástico explora a ideia da vingança da tripulação fantasma de um navio de leprosos que foi atraído para o naufrágio pelos futuros fundadores de uma pequena cidade costeira da Califórnia que celebra o seu centenário e que foi erigida à custa do ouro do navio malogrado. Uma atmosférica história de fantasmas colonizada pelo imaginário tradicional da Nova Inglaterra que se presta a uma leitura simbólica e espiritual. Do retorno do reprimido e da lei sempre implacável e infalível do efeito bumerangue à culpa coletiva (até com possíveis conotações ecológicas), vários são os temas interessantes desta ficção muito assente na criação de ambientes e de imagens com forte poder de assombro.
6.º Eles Vivem (1988)
Metafórica e ligeiramente autobiográfico, Eles Vivem possui ainda hoje, volvidos 30 anos, uma ressonância muito atual. Estreado nas vésperas do Election Day de 8 de novembro de 1988, que veria George H. W. Bush suceder a Ronald Reagan, esta parábola social e política é, como bem notou Slavoj Zizek, “uma das obras-primas esquecidas da esquerda hollywoodiana”. Mas é ainda, como também observou o filósofo esloveno, uma crítica da ideologia. O herói do filme, Nada (interpretado pelo wrestler Roddy Piper), é a corporização do avesso do sonho americano. Desempregado e desocupado, Nada acorda para o doloroso mas libertador deserto do real quando descobre por acaso uns óculos escuros que permitem ver a realidade para lá da sua face ilusória e se apercebe de que o mundo está controlado por extraterrestres. Eles Vivem não é, porém, um verdadeiro filme de ficção científica, antes uma parábola sobre como a esmagadora maioria das pessoas troca a vividez de espírito pelo mole conforto consumista e conformista, e de como os realmente vivos são uma ínfima minoria. Mas funciona também como uma bem-humorada alegoria política, com algumas inesperadas rimas com o nosso tempo, do neoliberalismo e de como os yuppies da era Reagan impuseram modelos de vida que celebravam o dinheiro como deus e a obsessão de ser um vencedor.
7.º A Bíblia de Satanás (1995)
É o último dos grandes filmes de Carpenter, que, ainda que provavelmente retirado do mundo do cinema por não sentir já o elã criativo e a energia necessários para realizar, não precisa também de fazer mais nada, pois há muito que ganhou um lugar na plêiade dos grandes autores do cinema contemporâneo. A Bíblia de Satanás (In the Mouth of Madness) é um conto sobre os perigos psicológicos existentes na relação entre escritor e leitor, na linha de obras sombrias que exploram os fantasmas e os demónios da escrita como Festim Nu, de David Cronenberg, A Face Oculta, de George A. Romero, ou Shining, de Stanley Kubrick. Sam Neill protagoniza este thriller literário na pele de um investigador de uma seguradora que vê a sua relação com a realidade vacilar ao ler um livro de um escritor de best-sellers de terror (o equivalente a um Stephen King) que desapareceu misteriosamente e cuja invulgar lucidez (uma espécie de insana supersanidade) parece ter a capacidade de induzir nalguns leitores sintomas de uma esquizofrenia paranoide.
8.º Alguém Anda a Espiar-me (1978)
Poderia pensar-se que, pelo facto de retratar um contexto tecnológico obsoleto, este seria um filme datado e anacrónico. Mas a verdade é que Alguém Anda a Espiar-me (Someone’s Watching Me!) continua, no essencial, a manter uma inesperada atualidade e um vigor quase intacto. Feito para o pequeno ecrã, este thriller psicológico de feição hitchcockiana centra-se numa realizadora de televisão que vive num moderno complexo de apartamentos e que começa a receber abusivas e intrusivas chamadas telefónicas de um weirdo que a vigia do prédio em frente. Uma vez mais, Carpenter explora o tema da solidão e da luta solitária e pelos seus próprios meios de alguém que é confrontado com uma situação em que todas as ajudas se revelam inúteis perante a principal estratégia do mal: a de isolar psicologicamente e capitalizar no desespero daí advindo para fragilizar a vítima. Como se não houvesse melhor metáfora para a presença do mal do que a de um stalker que empurra para um beco mental em que a única resposta possível é a coragem de quebrar o feitiço do perseguidor atraindo-o para o nosso terreno, onde, desfeita a distância de segurança, o Ícaro em escalada de assédio caia por se ter aproximado demasiado.
9.º Starman – O Homem das Estrelas (1984)
Assim como Jack Burton nas Garras do Mandarim influenciou um cineasta como Quentin Tarantino, Starman – O Homem das Estrelas encontrou eco tardio num filme como Exterminador Implacável 2 (o humanoide que ganha espessura humana ou os gags com as frases cool que o androide/alienígena vai aprendendo). Mais dirigido a um público adulto do que, por exemplo, E.T. – O Extraterrestre, de Steven Spielberg (que a Columbia rejeitou em favor do filme de Carpenter, decisão que haveria de lamentar quando a fábula de ficção científica de Spielberg se tornou um sucesso estrondoso), Starman é um tear-jerker que mostra a versatilidade e o ecletismo de um cineasta que sempre foi muito mais do que um “mestre do terror” (título que, por si só, já é muito honroso, tendo em conta que há tantos filmes bons de “série B” e tanto trabalho rotineiro e mediano com orçamentos chorudos). Neste road movie romântico, Jeff Bridges (nomeado para um Óscar por este papel) interpreta um extraterrestre que toma a forma do marido de uma mulher viúva (Karen Allen) e que se vai humanizando à medida que vai conhecendo aquela que de início o recebera com a maior das desconfianças. Uma parábola sobre as ironias do amor e o renascer da esperança de uma mulher resgatada à exaustão desesperante da depressão.
10.º Jack Burton nas Garras do Mandarim (1986)
Apesar de marcar um ponto de viragem e o princípio de um certo “declínio” de John Carpenter, As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim (Big Trouble in Little China, no original) foi, ainda assim, na altura da sua estreia, bastante subestimado pela crítica e pelos espectadores (revelou-se um fracasso de bilheteiras e abriu alas para acantonar o cineasta num certo gueto decadente simbolizado por prateleiras escusas de videoclubes e pelo rótulo redutor de “mestre do terror”). Entretanto reavaliada e revista em alta (o tempo foi um bom escultor deste filme), esta ficção pulp que concilia a veia autoral com a robustez de uma produção de um grande estúdio é mais interessante do que parece. Jogando com a estranheza e a “xenofobia” em relação às comunidades chinesas, esta fantasia de artes marciais cruzada com comédia que homenageia o universo wuxia e explora o submundo e as superstições orientais tem em Kurt Russell um protagonista atípico, que configura um tipo caracteristicamente carpenteriano (o do herói relutante). Russell e Kim Cattrall são uma espécie de par alternativo ao duo Harrison Ford/Cate Capshaw em Indiana Jones e o Templo Perdido.
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