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O disco do desassossego

Texto: DANIEL BARRADAS

Entre camaleão e Frankenstein, David Fonseca regressa com um álbum de sabor tutti-frutti, que, contra as probabilidades, funciona perfeitamente.

David Fonseca chega a um sétimo álbum de originais a solo vindo do seu tributo a David Bowie e parece ter sido contagiado pelo vírus do camaleão. Radio Gemini é um disco em formato de emissão de rádio, em que cada canção explora diferentes géneros e sonoridades que podem ir do folclore ao hip-hop, do rock FM ao reggae. Algumas são de duração standard, outras pequenos apontamentos sonoros, mais momentos ou esboços, frutos de um espírito irrequieto. O resultado é, naturalmente, tutti-frutti.

A chave para entender o porquê deste caleidoscopio sonoro talvez esteja precisamente na canção mais Bowie do álbum, “Sloppy Kisses” (que merecia mais de minuto e meio de duração), em que a frase “they were out to label me and to put me on a shelf” põe a nu um receio natural de quem se viu tão subitamente famoso no início de uma carreira que se previa indie. Este álbum mutante, disfarçado de estação de rádio, é pois uma mistura de espelho e projeção, fruto de uma identidade una mas que se atreve a mostrar facetada.

O anterior album “Futuro eu” já fora uma reinvenção do que David Fonseca, o artista, podia ser, depois do díptico “Seasons” ter conseguido cristalizar o que parecia um Fonseca chegado ao seu mais adulto e depurado. Numa entrevista da época de “Futuro eu”, Fonseca dizia algo como: “Não tenho sempre de cantar em inglês ou português. Se um dia me apetecer cantar em francês, faço-o.” E cá está ele a fazê-lo em “C’est pas fini”. É pouco mais de um minuto, numa das canções-momento que entremeiam o album, mas é um libertário momento de “eu faço o que quero”.

O que quer então David Fonseca com este disco? Não é muito claro. Se por um lado é um exercício de elegante e virtuoso ecletismo no modo como executa os mais diversos estilos musicais com inventivos e eficazes arranjos, por outro também não se coíbe em abraçar descaradamente “pimbalhices” como a subida de tom em “Oh my heart”, digna de qualquer “eurovisice”, não se refreia nos refrões açucarados e usa tão liberalmente a palavra “baby” que tenho vontade de contar quantas vezes aparece ao longo do disco (vou apostar em mais de 100).

Quem é este David Fonseca que com “Tell me something I don’t know” podia conquistar as pistas de dança do Azerbeijão? Quem é o outro que em “Lazy” canta um reggae que até recomenda “smoke another cloud”? Nem todas estas personagens são convincentes e “Radio Gemini” está sem dúvida mais perto do Carnaval do que de existencialismo Pessoano. Mas o que nos deixa na dúvida sobre as intenções do álbum é o facto de estar tão bem feito e produzido que o levamos demasiado a sério em vez de aceder directamente ao humor que possa estar subjacente a algumas opções e detalhes. (A perfeita e genial utilização de uma banda filarmónica em “Oh my heart”, ou o momento folclórico a meio de “Lullaby”)

O que permanece uma certeza é que Fonseca tem uma das vozes mais notáveis da música que se faz em Portugal, é um compositor virtuoso, versátil e prolífero e aqui pelo meio se encontram algumas das suas melhores canções. Destaque para “My love is real”, “Resist” e “Slow Karma” que adicionam algo de novo e entusiasmante ao que é claramente dele.

O conceito de formatar o album como uma emissão de rádio não é algo que resulte da forma mais natural e deixa-nos na dúvida se terá sido a forma de colar uma série de canções que de outra forma pareceriam uma aleatória manta de retalhos. Ouvido do princípio ao fim, sim, é interessante. Numa viagem de carro funciona. Mas para muitos com pouco tempo o album provavelmente transmitirá uma sensação de monstro de Frankenstein. No entanto é inegável a vida e alma que tem dentro de si.

“Radio Gemini” é um disco que, na teoria, não faz grande sentido mas na prática, funciona porque quem o fez sabe bem quem é e o que faz.

★★★★

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