Primavera Sound 2018: ecos de vida e morte na noite de encerramento
Texto: GONÇALO COTA Fotos: HUGO LIMA
O habitat que Kelela vem a desenhar desde a sua primeira mixtape, Cut 4 Me, de permanente conjugação de voz, etérea e vulnerável, com um sonoplastia sintética, electrónica elegante, detalhada e exuberante, reconstrói a espinha dorsal R&B de Take Me Apart, primeiro álbum da americana, presente na seleção coletiva dos dez melhores discos do ano passado desta equipa. É na sua narrativa, ondulada e inconstante, de sucessivas catarses e constrangimentos causados pela complexidade emocional de uma relação que teima em não terminar, que encontramos semelhanças com o nervo de outras (boas) propostas afrofuturistas e feministas, Lemonade, de Beyoncé, e A Seat at the Table, de Solange
Ao vivo, Kelela não tem um aparato cénico ou a efusividade a que as irmãs Knowles nos habituaram, mas apresenta um corpo de canções que tem a capacidade de se expressar por si só. Bem, quanto baste! Vestida integralmente de branco, a emocionada Kelela cantou um R&B intimista e contido, sem o pulso electrónico que caracteriza as versões de estúdio. Apesar da falta de tréguas da chuva e da sonoridade sóbria, o reverberar nos corpos do público, que compôs satisfatoriamente o anfiteatro do palco Super Bock, foi feita por um alinhamento preenchido quase integralmente por Take Me Apart, com destaque para Blue Light e Frontline.
“A minha música não é linear. Assim como a vida”. Foi assim que Kelsey Lu se descreveu. Apenas com Church, EP de 2016, e Shades of Blue, single lançado no decorrer deste ano, no alinhamento, apresentou-se sozinha com um pedal de loops e uma guitarra, mostrando a sua R&B suave, que encontra as suas linhas estéticas na relação com a sua rigorosa educação religiosa. Em palco uma mesa decorada com estrelícias, a sua flor preferida (e que partilhou com o discreto público), uma garrafa de licor, um enorme chapéu preto, um macacão colorido e exuberante. A performatividade contrasta com a voz calma, mas densa, que encontra dimensão nas ressonâncias. Kelsey Lu é, definitivamente, um nome para guardar.
“Onde estou eu, onde estou eu?” foram as últimas palavras de Arthur Cave, trocadas em mensagem com um amigo. Uma morte demasiado prematura, não tivesse o filho de Nick Cave apenas 15 anos. O luto, “momento elástico”, de omnipresença insistente tal como Cave descreve no documentário One More Time With Feeling, marcou todo processo criativo de Skeleton Tree – um conjunto de canções sombrias e fortes sobre a racionalização da perda. Este, que é o seu décimo sexto álbum, insurge-se na resposta à pergunta inicial: Arthur Cave está em toda a memória do pai.
O concerto mais aguardado desta edição, com uma muito expressiva e imperturbável moldura humana, facto que a chuva torrencial não conseguiu alterar, era este: Nick Cave e a sua banda, Bad Seeds, liderados por Warren Elis. E não é por pouco: Nick Cave é impressionante na maneira como se entrega ao público, numa postura mística, congregadora de um exorcista que, diametralmente, celebra a vida e expulsa a morte. Jesus Alone e Magneto, duas canções que perfilam em Skeleton Tree, são as primeiras que compõem um alinhamento que revisitou as tonalidades dos mais de 35 anos de carreia do australiano.
Into My Arms, de The Boatman’s Call, foi cantado ao piano, com o público a acompanhá-lo uníssono. Mas foi em The Weeping Song, do já quase trintão The Good Son, que o cantor estilhaçou a barreira entre o espectáculo e o espectador, caminhando numa plataforma por entre o público, um sensação de ilusionismo para quem o assistia ao longe. E eram mesmo muitos os que ali o viam. Push The Sky Away, do álbum homónimo, encerrou o excelente concerto de Nick Cave. Mas não sozinho: convidando algumas dezenas de pessoas a subir ao palco, como já o tem feito, num momento de comunhão luminoso. E onde está Nick Cave? Na memória do festival, como um dos seus melhores concertos, e de quem teve a sorte de o assistir.
Se a electrónica, complexa, mas vulnerável, operática na sua função e de exploração da dialética homem-máquina, de Arca começou por ser perfume em colaborações e produções de nomes como FKA Twigs, Kelela ou Björk, é em nome próprio que se rebela e se eleva a personalidade do músico venezuelano: primeiro com Xen e Mutant e, depois, com o brilhante álbum homónimo, em que utiliza pela primeira vez, sempre em espanhol, a sua fragilidade da voz.
Mas engane-se quem estivesse à espera de encontrar um desfile de canções deste álbum, um dos melhores do ano passado. Ou mesmo de qualquer outro: Arca mostrou-nos a arqueologia da sua persona, através de um DJ set com forma de puzzle com referências pop (Kylie Minogue e Janet Jackson), elementos reggaeton e de música sul-americana (que resgatam as vivências na Venezuela), presenças rock (Down, dos 311, fez parte do alinhamento), sempre coreografadas com techno e electrónica experimental, com semelhanças aos seus primeiros discos.
Imagens fortes que se coadunam com uma presença em palco forte e eléctrica, suportada por um aparato luminoso e música barulhenta. Pornográfico e maníaco, Arca falou-nos de pesadelos, de sexo e de tudo mais aquilo que entendeu, em comunicação permanente e efusiva, definindo as próprias barreiras de género, de performance, e de fazer música. Agradece, em vários momentos, ao epiléptico público encharcado, um nicho queer e feminino. E pede-nos que enfrentemos a sempre vida assim. Fenomenal.
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