Um retrato, de certa maneira
Texto: NUNO GALOPIM
Quando, em 1996, a EMI reeditou a obra de José Mário Branco em suporte digital, a opção (correta) de focar atenções nos seis álbuns de originais a solo – Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), Margem de Certa Maneira (1972), A Mãe (1978), Ser Solidário (1982), A Noite (1985) e Correspondências (1990) – garantiu novas vidas à discografia de uma das figuras mais determinantes na criação de um sentido de modernidade na música popular portuguesa e autor de uma das obras mais firmes na expressão de identidade, voz crítica ativista, e pensamento político que a canção alguma vez conheceu entre nós. Essa feliz campanha de reedições deixou, contudo, algumas etapas e discos ainda na memória do vinil. O trabalho registado com o GAC – Grupo de Ação Cultural (que corresponde a uma série de edições em álbum e single entre 1975 e 1978), teria mais tarde uma opção distinta, sendo reeditado no formato de uma caixa, lançada em 2010 pela Valentim de Carvalho, via iPlay. Num processo que agora tem um novo episódio – e que não será, espero, o derradeiro, já que falta trazer a suporte digital o álbum A Confederação (Diapasão, 1978), criado juntamente com Sérgio Godinho e Fausto e, ainda, temas do alinhamento de alguns singles – eis que surge agora Inéditos 1967 – 1999, complemento direto a todo este historial que se conta na forma de álbum e que teve já panoramas sugeridos em disco quer em gravação de palco – em Ao Vivo em 1997 (de 1997, como de resto a data o sugere) – ou em formato de ‘best of’ em Canções Escolhidas 71/97, ambos editados antes Resistir É Vencer (2004), o mais recente álbum de estúdio de José Mário Branco.
Lançado no formato de CD duplo Inéditos 1967 – 1999 é mais do que uma reunião de faixas editadas em singles ou álbuns de colaboração lançados apenas em vinil ou até mesmo uma mera recolha de arquivo. Ambas essas abordagens estão no disco já que, por um lado, aqui encontramos temas dos diversos singles e EP que José Mário Branco editou a solo (salvo FMI, que foi reunido em CD com o alinhamento de Ser Solidário) e, também, inéditos de sessões de estúdio até aqui nunca levados a disco. Mas há novidade, nomeadamente a peça instrumental Fantasie Languedocienne, criada numa residência em Montpellier em 1987 e apresentada, uma única vez, ao vivo, em 1988. Agora recriada (e gravada), com a partitura recuperada com a ajuda de investigadores do Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa, esta peça alarga (em disco) o espetro das visões musicais de José Mário Branco, que soma pistas tanto no jazz como em compositores como Poulenc ou Fauré que, afinal, integram tanto a história da formação musical, como serão possivelmente expressão do próprio gosto do músico.
A Fantasie Languedocienne é uma das várias (boas) surpresas desta reunião de temas que escutamos cronologicamente ordenados segundo a data da sua criação. Muitas dessas surpresas chegam de vários episódios de colaboração com o cinema. E se os temas das bandas sonoras de Gente do Norte, de Leonel Brito, e O Ladrão do Pão, de Noémia Delgado, tinham conhecido edição num single e EP respetivamente editados em 1978 e 1979, já as contribuições para Agosto, de Jorge Silva Melo e A Raiz do Coração, de Paulo Rocha, são peças nunca antes escutadas em disco, em todas elas sendo traduzidos ecos de fontes de inspiração. No caso de Agosto contamos com cinco temas “à maneira de” que ajudaram a contextualizar o tempo e geografia da ação. O Fim de Verão (À Maneira d’Os Conchas) é um belo tratado de reflexão sobre o ié ié português. E nesse tema, assim como nos restantes do filme de Silva Melo ou em Alma Herdada (Bolero à Maneira de Antonio Machin), que José Mário Branco cantou com os dedos a apertar o nariz “para cantar à maneira do célebre bolerista cubano”, ficam marcas do sentido de humor do músico.
O alinhamento de Inéditos 1967 – 1999 abre com as mais antigas gravações de estúdio de José Mário Branco. Com base no Cancioneiro Galaico-Português, coligido por Natália Correia, e numa aventura que chegaria a uma edição disco com Michel Giacometti como importante presença, o EP Seis Cantigas de Amigo, gravado em Paris (com Sérgio Godinho numa segunda viola e pandeireta) representou a estreia discográfica de José Mário Branco. Na verdade foram sete as Cantigas de Amigo gravadas, uma delas tendo acabado de fora do EP lançado pelos Arquivos Sonoros Portugueses em finais dos anos 60. Inéditos 1967 – 1999 colmata esta “falta” incluindo Quantas Sabedes Amar, Amigo (ou Mar de Vigo), sobre poema de Martim Codax. A progressão do alinhamento passa depois por Ronda do Soldadinho, canção editada em single em 1969 e que regista uma primeira materialização de uma ideia militante de reflexão sobre a atualidade e que, tal como o EP de cantigas de amigo, surge num período de exílio vivido em Paris. Musicalmente a Ronda do Soldadinho (que está numa versão em maquete no acerco do Museu da Música Portuguesa) estabelece relações entre tempos e formas musicais, lançando desde logo uma visão pessoal de abordagem à canção popular que, com invulgares marcas de diversidade, atravessaria depois a restante obra de José Mário Branco.
Devidamente contextualizados com textos explicativos e imagens (fotografias, cartazes, capas) as canções sucedem-se, recuperando ora outros temas de 45 rotações ou até mesmo inéditos (como Fim de Festa, marcha aqui recuperada na sua forma original, a solo) ou juntando faixas editadas em discos temáticos ou criadas para ocasiões específicas, como Le Proscrit de 1871, Remendos e Côdeas ou Quantos é Que Nós Somos. Em conjunto define-se aqui algo que é mais do que um panorama de raridades. Coleção de ideias, canções, acontecimentos, Inéditos 1967 – 1999 é, em si, um retrato, de certa maneira, dos percursos artísticos de José Mário Branco. E, como se fosse preciso ainda escrevê-lo, mais uma peça de uma das mais ricas discografias da música portuguesa.
“Inéditos 1967 – 1999”, de José Mário Branco, está disponível em 2CD e nas plataformas digitais, numa edição da Parlophone/Warner. ★★★★★
Deixe uma Resposta