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Quando a memória tem sabor a hoje

Texto: NUNO GALOPIM Fotos: LAIS PEREIRA

O Maria Matos esgotou a sala para um reencontro com “Belzebu”, mítico álbum dos Telectu que abriu uma frente de exploração para música minimal repetitiva entre nós. Abriu-se assim um espaço de importantes revisitações da memória de espaços marcantes da música experimental nascida entre nós.

Foi o próprio Vítor Rua quem o reconheceu quando, de microfone na mão, se dirigiu ao público que esgotara a sala do Maria Matos: estávamos a ouvir música dos Telectu como nunca antes fora possível. A tecnologia, as condições de trabalho, permitiram-nos escutar, 35 anos depois de ter chegado a disco, uma obra-chave na história da música eletrónica portuguesa e, igualmente, e juntamente com o posterior Off Off (de 1984), uma peça marcante na inscrição de um espaço de vincada identidade entre as várias frentes que, em solo europeu, assimilavam e transformavam os ecos do minimalismo em busca, não de mimetismos, mas antes de demandas próprias. E únicas.

Foi uma boa surpresa a notícia de que, agora acompanhado por António Duarte (que assegurou as partes instrumentais que antes cabiam, em palco, a Jorge Lima Barreto), Vítor Rua ia reativar as memórias dos Telectu, devolvendo ao presente uma música que sempre nos habituou a sonhar o futuro e que, como ouvimos, não ficou presa ao passado. Um futuro não condicionado, estruturado e pensado, mas aberto às sugestões de liberdade que, por vezes, aconteciam em plenas atuações, sob inesperadas mudanças às quais a música se tinha, então, de habituar… Essa foi, de resto, outra das memórias evocadas depois de termos escutado, na íntegra, o alinhamento de Belzebu (de 1983), interpretado com o rigor de quem quer ser fiel a uma ideia que o tempo não erodiu. De resto, e como também nos contou Vítor Rua, os Telectu tinham toda a sua obra (anterior à etapa em que se focaram na música improvisada) escrita em partituras, facto que deixou boquiaberto, numa ocasião, o compositor e guitarrista norte-americano Bill Frisell… A noite de sexta-feira, no Maria Matos, deixou claro porque, por muito importante que seja o apurar do ouvido, é na escrita que reside a fixação mais precisa da memória.

Outra das “verdades” fundamentais da atuação foi de caráter físico. Os instrumentos em cena correspondiam a peças que, de facto, tinham passado por outros momentos da vida dos Telectu. Objetos – como uma palheta, gracejou Vítor Rua – que António Duarte foi adquirindo ao longo dos tempos e que, agora, conferem outra das marcas de firme identidade desta reativação do legado dos Telectu.

Sob a presença contínua de um discreto marulhar eletrónico, que podia sugerir que todos nós mergulhássemos por aqueles fios e circuitos e nos deixássemos envolver pelos sons, as composições de Belezebu preencheram a primeira parte de um concerto para o qual, confessaram, tinham um encore preparado, que incluiu uma passagem por outros dois álbuns dos Telectu: Telefone (1985), gravado ao vivo em Moscovo e Off Off, este apontado como o próximo episódio no que parece ser uma série de atuações e outras possíveis reedições da obra do grupo. Suportada por imagens em vídeo e uma interpretação exemplar, a atuação abre uma frente de trabalho importante para os Telectu, que deixam de ser meras memórias para assumir a forma de uma entidade que lhes dá vida. No ar ficou a sede de, além da iminente reedição de Belzebu (e também do EP Tapiei Disco do projeto DWART, de António Duarte) pela nova etiqueta Holuzam, ver Off Off submetido a um processo semelhante. E, porque não, dar a outras vozes pioneiras da história da eletrónica portuguesa, motivos para pensar em fazer o mesmo. Porque, talvez mais do que nunca antes, estas músicas – que então olhavam em frente – encontram no presente um contexto que, mesmo sabendo-as memória, não as trata como nostalgia. Porque aquele futuro ali anunciado é o hoje em que vivemos.

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