Dez memórias noturnas do verão de 1988
Seleção e textos: NUNO GALOPIM
Se em 1987 a house conquistara atenções para lá de Chicago e das pistas de dança onde cativara primeiros DJ, o verão de 1988 veria semelhante processo a levar não só o tecno (nascido em Detroit) a outros patamares de atenção mas também um outro espaço de grande atividade na música de dança a conhecer, por via de uma adesão de clubes londrinos, igual episódio de visibilidade mainstream: o acid house.
Se no verão de 1987 a música de dança lançara bases de uma revolução de costumes (com consequências evidentes nos comportamentos do mercado discográfico), o de 1988 cimentou o momento. O panorama desenhado pelas tabelas de vendas e, consequentemente, das programações de estações de rádio focadas nos “êxitos” discográficos não mais era um palco dominado pela pop e o rock. A nova música de dança tinha uma voz a conquistar adeptos e visibilidade… Um ano depois seria a vez do hip hop e de novas expressões do r&b se juntarem a esta mesma etapa de transformação dos gostos.
Recordemos aqui dez temas que marcaram presença nas pistas de dança no verão de 1988 (e nos meses logo a seguir). Alguns foram êxito imediato nas tabelas de singles, conquistando assim também uma vida diurna e lugar nas casas de quem, de noite, saía para dançar. Outros lançaram bases para ideias que ganharam forma maior mais adiante…
Ofra Haza “Im Nin’Alu”
Tema originalmente incluído no álbum de 1984 Yemenite Songs, Im Nin’Alu cativou atenções quando, três anos depois, a dupla de hip hop Eric B & Rakim usou um sample da canção em Paid in Full. A curiosidade e o apetite, uma vez aguçados, geraram por sua vez uma revisão da canção, que surgiu numa leitura mais polida e dançável no alinhamento do álbum de 1988 Shadday, conhecendo edição no formato de single como Im Nin’Alu (Paid in Full Mix). Esta nova versão cativou públicos a uma escala global, tendo representado uma das forças maiores de um fenómeno que então ganhou expressão em muitas pistas de dança, que se renderam ao poder do exotismo de discos que traziam sabores, cores e ritmos de várias paragens do mundo.
Yello “The Race”
Um dos projetos mais invulgares (e criativos) da história da primeira geração da pop feita com electrónicas surgiu na Suíça em finais dos anos 70. Inicialmente uma dupla feita por Boris Blank (electrónicas) e Carlos Perón (fitas magnéticas) os Yello apresentaram-se como trio assim que notaram a falta de um vocalista, o que faz entrar em cena Dieter Meier, que juntou elementos de invulgar personalidade através de uma abordagem ao canto tão inesperada quanto o era a forma como a música do grupo se ia apresentando. Pouco depois o grupo ficaria reduzido a Blank e Meier. O seu último disco verdadeiramente marcante foi The Flag, de 1988, lançado numa altura em que, sob euforia acid house, o single The Race acabou transformado num inesperado fenómeno de grandes dimensões.
Bomb The Bass “Don’t Make Me Wait”
Nascido como um veículo para a música do DJ britânico Tim Simenon, o projecto Bomb The Bass apresentou-se em fevereiro de 1988 com Beat Dis, um single que cruzava estruturas da música house com técnicas de corte e colagem, representando inclusivamente (e juntamente com Pump Up The Volume, dos MARRS) um dos primeiros exemplos com explsição global de uma música que começava a sair do berço noturno e a invadir a luz do dia. O álbum de estreia Into The Dragon, surgiu alguns meses depois, acrescentando às afinidades com a house e com a cultura do sampling sinais de evidente interesse pelo universo do hip hop. O álbum inclui, além de Beat Dis, Megablast, uma versão de Say A Little Prayer, um clássico maior de Aretha Franklin e Don’t Make Me Wait (que surgiu em single durante os meses de verão de 1988).
Salt-n-Pepa “Push It”
Originalmente apresentado como lado B do single Trampin’, editado em 1987, a canção conheceu uma segunda vida em nome próprio em 1988. Dupla feminina que representou então um dos primeiros fenómenos com projeção mainstream para um projeto de hip hop, Salt-n-Pepa atuaram em 1988 no concerto que assinalou o 70º aniversário de Nelson Mandela, apresentando aí Push It, que imediatamente cativou atenções, iniciando uma nova vida de sucesso que o projetou para um patamar de visibilidade global no verão de 1988. Originalmente fora do alinhamento do álbum Cool Hot & Vicious (disco de esteia das Salt-N-Pepa, editado em 1986), o tema Push It surgiu em reedições do álbum depois de 1988. O teledisco mostra a dupla numa performance de palco, juntamente com a DJ Spinderella e o teclista Luv Bug.
Yazz and The Plastic Population “The Only Is Up”
O borbulhar de entusiasmos na cena noturna elevou o acid house da pista de dança a um patamar de vida diurna que envolveu as programações de rádio (e televisão) e, naturalmente, o mercado discográfico. Estabeleceram-se assim relações com o formato da canção pop, tendo um dos exemplos de maior sucesso nascido de uma versão de um tema soul algo “esquecido” de 1980, originalmente interpretado por Otis Clay. Tendo surgido como vocalista no tema Doctorin’ The House dos Coldcut, a cantora Yazz teve numa versão desta canção, que contou com produção da dupla Jonathan More e Matt Black (ou seja, os Coldcut) um caso de sucesso fulgurante. Com uma dinâmica pop, mas claramente animada por bleeps e outros mais elementos sonoros diretamente associados ao acid house, The Only Way Is Up transformou-se num dos êxitos maiores do ano. Para Yazz (que assinou alguns discos como Yazz & The Plastic Population) foi um promissor arranque de carreira que, todavia, e apesar do impacte na época do sucessor Stand Up For Your Love Rights (que chegou ao número 2 no Reino Unido), não está hoje muito longe do terreno dos one hit wonders.
A Guy Called Gerald, “Voodoo Ray”
A revolução que a club culture viveu na recta final dos anos 80 elevou ao estatuto de fenómeno pop alguns nomes de DJ e produtores e deu visibilidade a uma música que, pouco tempo antes, não teria vida fácil fora das pistas de dança. Foi assim que, no verão de 1988, um nome que caminhava entre os estetas que desenhavam as linhas do acid house – que então entrava, à noite, na ordem do dia – ganhou visibilidade logo em início de carreira. Natural de Manchester, o DJ e produtor A Guy Called Gerald (nome pelo qual então se apresentou Gerald Simpson, que por esses dias militava nos 808 State) escolheu a mítica discoteca ligada à Factory Records para ali apresentar uma criação que desenvolvera com a sua “maquinaria” caseira. Peça de pura exploração das possibilidades rítmicas e sonoras que então definiam as bases do universo acid house, o hipnótico Voodoo Ray conheceu edição em disco e garantiu-lhe um primeiro episódio de grande sucesso para uma carreira a solo que, se bem que longa, nunca repetiria este feito.
S’Express “Superfly Guy”
A emergente utilização do sampling como ferramenta de criação musical e a consequente criação de uma cultura de corte e colagem teve entre as suas primeiras expressões de grande impacte o single que, em abril de 1988 assinalara a estreia do projeto S’Express, um coletivo que tinha por figura ao leme o DJ e produtor Mark Moore. Com claras marcas de ligação ao acid house, Theme From S’Experess chegou ao primeiro lugar da tabela de vendas de singles no Reino Unido (o que confirmou mais uma vez o então novo potencial no mercado discográfico de ecos da club culture). O single, e as suas remisturas, conheceram projeção global. E poucos meses depois, já com um álbum na manga, os S-Express lançam um segundo single, Supefly Guy que, na época, cativou atenções. A erosão do tempo deixou viva apenas a memória de Theme From S’Express, assim como a referência ao facto de, no terceiro single, Hey Music Lover, terem conhecido uma remistura assinada por Philip Glass. Mas no verão de 1988, este Superfly Guy pertencia à banda sonora de quem saía para dançar.
Pet Shop Boys “Domino Dancing”
Alguns anos antes do aprofundar (pontual) de uma relação com a cultura latina no álbum Bilingual, os Pet Shop Boys apresentaram em Domino Dancing a sua primeira incursão por esse mesmo espaço. Single editado em 1988, e depois integrado no alinhamento do álbum Introspective, Domino Dancing resultou de uma colaboração ocasional com Lewis A. Martinée, figura com ligações ao universo freestyle. O teledisco, realizado em Porto Rico por Eric Watson, reforça a alma latina desta breve aventura com sabor a verão.
Inner City “Big Fun”
Juntamente com os colegas de escola Derrick May e Juan Atkins, Kevin Saunderson é um dos Belleville Three, o trio de jovens músicos de Detroit que, em meados da década de 80, estiveram na origem do techno. Saunderson lançou discos através de vários projetos e designações. De uma dessas colaborações, nascida de uma sugestão de trabalho com a cantora Paris Grey, surgiu em 1988 o projeto Inner City que acabaria por ter uma vida mais longa e de maior sucesso do que muitas outras criações do músico. A génese dos Inner City está, precisamente, numa sessão de estúdio entre Saunderson e a cantora, com o tema Big Fun em cima da mesa. Editado em setembro de 1988 revelou, na sua forma de unir linguagens da canção pop ao apelo desafiante do emergente techno, o sucesso de um modelo, criando espaço de trabalho que Kevin Saunderson continuaria a explorar nos anos seguintes. Big Fun representou todavia, e juntamente com o segundo single dos Inner City – Good Life, editado pouco depois, o melhor da obra dos Inner City.
The KLF “What Time is Love?”
Figuras já com alguma experiência na cena musical de Liverpool, Bill Drummond e Jimmy Cauty juntaram forças em 1986, começando a editar discos sob a designação The Justified Ancients of MuMu (habitualmente referidos como The JAMs), abrindo uma companhia própria com nome KLF Communications. Em 1988, já com dois álbuns editados – um deles como The JAMs, o outro, uma aventura ambient assinado como KLF – experimentaram o sabor do sucesso com uma canção que captava e transformava memórias do imaginário da série Dr. Who. Doctorin’ The Tardis (que editaram como The Timelords) foi uma experiência sem continuidade, embora tivesse lançado uma abordagem visual à música que continuaria no single seguinte do duo, o primeiro de uma sucessão marcante que editariam como The KLF e que culminaria na edição do álbum The White Room, de 1991. Lançado no final do verão de 1988 o máxi White Time Is Love (com a expressão “pure trance” na capa revelava a primeira de uma série de abordagens a este tema que o grupo editaria em disco nos anos seguintes. Esta, a primeira, era um instrumental claramente inspirado pelos ares do acid house e expressão pioneira do que, pouco depois, cativaria multidões noturnas com a hipnótica trance music.
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