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O rapaz interrompido

Texto: NUNO CARVALHO

Lynn Shelton conta em “Outside In” a história de um amor difícil de assumir entre um homem que saiu da prisão (aonde foi parar por um crime que não cometeu) e a sua antiga professora do liceu, que não o abandonou e se empenhou em ajudá-lo a reconquistar a liberdade.

Quem conhece a Netflix sabe que é possível dar estrelinhas aos filmes e às séries (e aos demais conteúdos), e que, de um modo geral, quase tudo o que por lá aparece tem sempre ratings fantásticos (é difícil aliás encontrar alguma coisa com menos do que cinco estrelas ou, vá lá, quatro e meia). Acontece que uma boa parte do que vem classificado como excelente muitas vezes é bem menos interessante do que isso, e sucede também que o que (raramente) aparece com duas ou três estrelas acaba com frequência por se revelar melhor do que aquilo que a avaliação dos espectadores dá a entender. Claro que são apreciações de espectadores de todos os tipos e faixas etárias e não de críticos e especialistas. Um desses casos de filmes com classificação mediana/razoável recentemente disponíveis na plataforma de streaming é Outside In, de Lynn Shelton, cuja média de três estrelinhas pode levar o espectador menos atento a ignorar um filme a que vale a pena dar uma oportunidade.

O filme, que estreou em sala nos EUA no início de abril deste ano numa distribuição muito limitada e chegou à Netflix dois meses depois, é o primeiro drama de Shelton, conhecida por fazer maioritariamente comédias independentes, como Humpday – Deu para o Torto (2009) ou Entre Irmãs (2011), embora também com uma incursão por territórios mais mainstream em Encalhados (Leggies, 2014), com Keira Knightley e Sam Rockwell. Não sendo nenhum drama pesado, Outside In é ligeiramente dramático, não só pela situação existencial de um dos protagonistas mas também porque se trata de uma história de um hard-won love (um amor que tem de fazer um longo e difícil caminho para ser conquistado).

A história centra-se em Chris (Jay Duplass), um homem de 38 anos que sai em liberdade condicional após cumprir uma pena de prisão de 20 anos por um crime que não cometeu, e na sua relação com Carol (Edie Falco), a sua antiga professora de Inglês do liceu que, durante os tempos solitários que passou fora do mundo, foi a sua única amiga e defensora, e a quem, graças à persistência dos seus esforços, deve em boa parte a recuperação da sua liberdade. Não é muito difícil de adivinhar que esta dedicação especial de Carol fez nascer uma maior proximidade entre ambos e que Chris a procura com a esperança de que a sua protetora reconheça que existe amor entre eles. Carol, no entanto, é casada, embora seja claro que está presa num casamento infeliz (e inexistente). E é claro também que Carol gosta de Chris, porque se este ficou grato e tocado por aquela ter sido a sua única amiga fiel e a única pessoa a lutar por ele quando toda a gente o abandonou (incluindo a própria família), também para ela Chris foi o seu único foco e fonte de entusiasmo no meio da sua crise de meia-idade a pedir renovação e mudança após tão longo impasse existencial. Entretanto, Chris estabelece também uma relação de amizade com a filha de Carol, uma adolescente prestes a entrar na universidade que desenvolve por ele uma paixoneta e com quem se dá bem, sobretudo porque há nele clara e compreensivelmente um desenvolvimento comprometido e parado desde que aos 18 anos foi confinado a uma longa reclusão. “He’s like boy interrupted”, disse Lynn Shelton, numa alusão ao Girl, Interrupted de James Mangold.

Com produção executiva dos irmãos Duplass (Jay e Mark), e com argumento de Shelton e de Jay, Outside In é o sétimo filme da realizadora, que também tem trabalhado para televisão. As interpretações são sóbrias e contidas, sem deixarem de ser intensas, e quase tudo se joga nos pormenores e na filigrana emocional da interação entre Duplass e Falco, com a atriz veterana a ter aqui um dos seus papéis mais fortes dos últimos tempos, apesar ou precisamente graças a um belo underacting. Ao estilo de realismo mumblecore juntam-se também as canções de Andrew Bird.

Numa das cenas finais, quando tudo parecia estar resolvido a descontento, Carol aparece no local de trabalho de Chris e diz-lhe estas palavras simples mas emotivas e esperançosas: “Tenho pensado um pouco em ti nas últimas semanas. Ouvi o que disseste sobre querer ter uma vida simples. Eu percebo, entendo isso… Completamente. Mas… Foi isso que eu tive, entendes? Vais trabalhar, voltas a casa, jantas, vês televisão… Eu sinto que mal acabei de começar. Eu quero mais. Adorei o trabalho que fiz para te ajudar a sair. Senti-me importante, senti que fez a diferença. Senti que fui boa no que fiz. Quero fazer mais disso. Estava a pensar que, quando a Hildy for para a universidade no ano que vem, talvez eu vá para Seattle para estar mais próxima dos escritórios e do trabalho. Porque não? Eu… Agora estou completamente livre. Estava a pensar… Queres ir almoçar um dia destes? Talvez possamos tentar conhecer-nos… como somos agora.”

“Outside In”, de Lynn Shelton, com Edie Falco, Jay Duplass e Kaitlyn Dever, está disponível na Netflix

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