Viagens com Charley
Texto: NUNO CARVALHO
Numa entrevista ao The Guardian em 2015, a pretexto do seu muito aclamado e premiado 45 Years, Andrew Haigh falou da importância da resiliência para se ser bem-sucedido no mundo do cinema: “It takes a kind of insane self-belief to go on” (é preciso uma espécie de autoconfiança insana para continuar). Charley, o protagonista de O Meu Amigo Pete (Lean on Pete), até porque só tem 16 anos, talvez não tenha essa autoconfiança inabalável, mas tem (ou acaba por ser obrigado a ter) uma capacidade de seguir em frente apesar de todas as adversidades e mesmo tragédias. A certa altura, quando o seu pai morre – um homem com boas intenções mas errático que criou o filho sozinho desde muito pequeno, quando a mãe abandonou a família –, Charley, que entretanto fugiu com um cavalo de corridas a que se afeiçoou e que quer salvar do abate por já não servir para competir, não tem mais ninguém no mundo a não ser o seu amigo de quatro patas, com quem fala e em que se apoia, impedindo-o de cair num solipsismo psíquico insuportável.
A história começa quando Charley (Charlie Plummer) conhece Del (Steve Buscemi), proprietário de um punhado de cavalos de corridas que lhe permite que trate de Lean on Pete, um quarto de milha (raça de cavalos velozes em percursos pequenos, entre os 100 e os 400 metros) que nunca foi muito competitivo e que já não atrai o interesse de quase ninguém. Depois de ter uma conversa com Bonnie (Chloë Sevigny), uma jóquei que vive com Del e que é a única profissional com quem o cavalo ainda consegue ganhar algumas corridas, e perceber que, por ter um problema nas patas, Lean on Pete acabará por ir parar ao México e ter como único destino o abate, Charley decide fugir com ele, guiando a carrinha com atrelado de Del pela estrada fora e cruzando-se com diversas figuras no caminho. Bonnie personifica o duro realismo e a frieza utilitária de alguns adultos (e profissionais) por oposição à frequente bondade e pureza de coração dos mais jovens. “Não podes prender-te a um cavalo. Não podes pensar neles como animais de estimação. Estão aqui para correr e é tudo. Se perderem demais, são descartados. É assim e pronto”, diz-lhe a jóquei. Mas para Charley o cavalo tornou-se um amigo. E, a partir de certa altura, o único que tem.
O que torna este filme extraordinário e diferente de outros que retratam uma relação de afeição entre um rapaz e um cavalo, como, por exemplo, Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg, é o facto de não haver aqui uma abordagem sentimentalista. O olhar de Haigh tem a dose ideal de desapego (é enxuto), mas, ao mesmo tempo, sabe ser comovente ao apostar na criação de emoções muito verdadeiras no espectador, nunca puxando à lágrima através de manipulações emocionais fáceis. Mas se a situação existencial do protagonista se vai tornando cada vez mais dura, isso deve-se apenas ao facto (realista) de a realidade da vida ser por vezes dura e cruel, e não a nenhuma dureza de Haigh, que conta uma história bastante verosímil mas com compaixão pelas suas personagens – e sobretudo pelo miúdo –, ainda que com uma forte contenção emocional (aliás projetada no rapaz, que tem boa índole mas é um sobrevivente e não pode deixar-se abater pela depressão porque não pode sequer dar-se a esse “luxo”). Contudo, essa contenção (como uma mola bem apertada que de repente salta) só torna os momentos emotivos do filme ainda mais pungentes, havendo mesmo uma cena capaz de levar às lágrimas o coração mais petrificado deste mundo. De resto, o olhar equânime do realizador inglês está mais perto do de uma Kelly Reichardt (e do seu Wendy and Lucy) ou mesmo do da sua compatriota Clio Barnard (em O Gigante Egoísta).
“O Meu Amigo Pete”, de Andrew Haigh, com Charlie Plummer, Steve Buscemi e Chloë Sevigny, está em exibição numa distribuição da Alambique Filmes ★★★★
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