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Devemos chamar “álbum” a um disco de gravações perdidas… e achadas?

Texto: NUNO GALOPIM

Uma sessão de gravação do quarteto de John Coltrane, registada em 1963, andou perdida anos a fio. E agora surge reunida num disco, que inclui mesmo dois inéditos. Mas será justo chamar a este lançamento um “álbum perdido”?

A ideia do “disco perdido” é sempre coisa sedutora. E o impacte que está a ser gerado pelo lançamento de Both Directions at Once, de John Coltrane, que tem ainda a adenda “the lost album” no título, é mais uma expressão desse encantamento que o discurso de comunicação tão bem pode mitificar.

Mas vamos por partes…

Perdido? Sim, sem dúvida. Ou, antes, “perdidas”, já que falamos de gravações. Gravações registadas em estúdio na véspera de sessões, no mesmo local (o Van Gelder Studio, em New Jersey), que geraram um álbum em parceria com Johnny Hartman. Gravações que decorreram num horário que precedeu uma atuação, nessa mesma noite, de Coltrane com o seu quarteto clássico (onde militavam também McCoy Tyner, Elvin Jones e Jimmy Garrison) no Birdland. Gravações que Coltrane levou para casa, mostrou à mulher, e por ali ficaram arrumadas. Reza a história que uma outra cópia das sessões foi feita, para Coltrane, pelo próprio Van Gelder. Quanto aos masters, esses terão sido apagados anos mais tarde para ganhar espaço de arquivo… E a verdade é que as gravações desta sessão ficaram em silêncio, “perdidas”, até que, na iminência de um leilão, foram adquiridas pela editora. Et volià… Ei-las em disco.

Agora a questão: seriam um álbum?

Aí a coisa complica-se. E não são já poucas as ocasiões em que, postumamente, sessões que eram destinadas a ficar em arquivo, não destinadas portanto a mais ouvidos, acabaram por conhecer lançamento em disco. Basta recordar, por exemplo, o “segundo” álbum de Jeff Buckley. Em grande parte era feito de gravações que o músico entendera deixar de lado antes de recomeçar trabalhos que acararam, contudo, incompletos.

A edição de Both Directions at Once, no qual se incluem vários takes de dois inéditos com título que mais parece coisa de arquivo, já que se se apresentam como Untiteled Original 11838 e Untiteled Original 11386, tem levantado várias leituras e opiniões, notando algumas que o que aqui escutamos parece representar mais representar um episódio de demanda em curso do que um achado consumado. Têm, naturalmente, o valor de um “instantâneo”, para ouvir, do que aconteceu naquele tempo e naquele lugar, havendo quem tenha identificado aqui expressões de um tempo de transição na música de Coltrane.

Agora, chamar a estas gravações um… “álbum perdido”?

Aí a coisa já é de digestão mais complicada… Um “álbum” corresponde a uma ideia de conjunto de gravações reunidas e sequenciadas. A uma ideia concluída. Refletida, moldada e assinada. Coltrane pegou nas gravações de uma sessão, levou-as para casa, escutou-as e a coisa ali ficou e daí nasce este alinhamento… Estaria assim tão “pronto” e seria assim tão “definitivo” que lhe merecesse encará-lo como álbum?

Além disso, auando se gravam “álbuns” escolhem-se os takes de cada tema a usar. Em edições “com extras” mostram-se, eventualmente, outros takes. Partir de sessões e, mesmo com curadoria (ai essa palavra maldita!), definir um alinhamento que cruze vários takes, não é exatamente criar um álbum. Chamássemos a Both Directions at Once qualquer coisa como “The Lost Sessions” e a coisa seria mais precisa. Seria álbum perdido se Coltrane tivesse trabalhado estas gravações e as agrupado como tal. Mas não me parece que foi assim que este alinhamento aconteceu.

Nada disto diminui a excelência da música que escutamos nas gravações. Nem o que de maravilhoso representa a possibilidade de descobrir peças “perdidas” da obra de um músico desta dimensão (por muito que seja lícito levantar o velho debate ético sobre as edições póstumas). Agora chamar “álbum” ao que é uma seleção de temas de uma “sessão” de gravação parece mais malabarismo de discurso de comunicação que um serviço à verdade da ideia do que um álbum é. Porque nem todos os discos representam a expressão de um “álbum”.

“Both Directions at Once: The Lost Album”, de John Coltrane, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Impusle/Universal.

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