A realidade construída por Thomas Albdorf
Texto: JOÃO FERNANDES, em Amesterdão
Muitas perguntas nos ocorrem fazer quando observamos as fotografias de Thomas Albdorf: O que aconteceu a esta montanha/estátua/coisa? Isto é real? Para que é que eu estou a olhar, exatamente? Ele está a brincar connosco?
Ainda que esteja assente num substrato imagético convencional e vagamente familiar, é inevitável achar estranha a realidade presente no trabalho do fotógrafo austríaco que apresenta a sua primeira exposição em museu, no FOAM Amsterdam. Talvez até seja a reação mais expectável ao trabalho de um fotógrafo que explora entusiasticamente o mundo de possibilidades acessível através dos meios de pós-produção digital, usando-os de forma bastante liberal, em sucessivos ciclos de edição de imagem, que deixam óbvias marcas da manipulação que foi feita e que sugerem que Albdorf talvez esteja a brincar connosco, ou simplesmente a brincar.
Com o título Room With a View, o conjunto das fotografias expostas foram selecionadas das três mais recentes séries fotográficas de Albdorf: I know I will see what I have seen before (2015), General View (2017) e A miss is as good as a mile (2018), em que a última foi criada propositadamente para a exposição no FOAM.
I Know I will see what I have seen before, apresentada em 2015, tem como tema as paisagens alpinas que filmes como Música no Coração trataram de tornar sinónimo da Áustria no vasto catálogo de clichés que é partilhado por todos os que consumiram imagens com iconografias semelhantes referentes a esse país. Os prados alpinos, as montanhas com picos nevados: imagens que são conhecidas, já foram fotografadas e reproduzidas milhões de vezes, constituindo o cliché que Albdorf tenta desconstruir e voltar a criar, com intenção de adicionar algo de novo.
As imagens são uma fusão de fotografias das paisagens que Albdorf visitou no seu país, de instalações esculturais que fotografou em estúdio, e de o que quer que seja que acontece quando se usa muitos meios e processos de edição digital. O resultado é algo familiar mas ao mesmo tempo intrigante e enigmático, uma realidade que pensamos conhecer mas que quando vemos mais de perto não é aquela que nos é tão familiar. Há um processo de abstração figurativa do cliché, uma paisagem da montanha não é apenas uma paisagem da montanha, mas sim o palco de uma escultura, que seja talvez impossível e sido criada digitalmente. A água a cair de uma cascata pode ser também pó branco a cair sobre um tapume negro – as imagens são semelhantes à primeira vista, mas com cuidado percebemos que uma e outra vivem num contexto completamente diferente.
O recurso à pós-produção torna-se uma marca de autor, permitindo-lhe criar e explorar espaços novos, uma realidade virtual em que existe um local parecido à Áustria, mas que está desligado do espaço geográfico da nação austríaca. Em primeiro lugar, porque a realidade das fotografias de Albdorf nem sequer existe, pois foi cuidadosamente construída num computador, para dar a ilusão de existir. Contudo, e novamente, quem dedicar tempo e atenção suficientes a essa tarefa, irá descobrir que há imperfeições na sobreposição e fusão das imagens, e que a realidade física e a virtual se confundem facilmente. A familiaridade do cliché fica assim minada pela dúvida e pelo fascínio.
O fotógrafo continua a trabalhar sobre clichés, e em 2017 é apresentado General View, um livro fotográfico sobre o parque nacional Yosemite, um dos mais emblemáticos, conhecidos e fotografados parques dos Estados Unidos da América. Yosemite ocupa um lugar de destaque na história da fotografia, tendo sido eternizado por grandes fotógrafos americanos de paisagens, como Ansel Adams. É por isso natural que seja conhecido por qualquer fotógrafo, amador ou profissional, e é também por isso que a sua escolha como assunto para as suas fotografias revela a preocupação de Albdorf questionar os métodos fotográficos tradicionais e interrogar se fazer print screens de imagens vistas na internet também constitui parte da prática fotográfica na era em que a imagem fotográfica, como todos os outros tipos de média, é cada vez mais usualmente definida por uma abstrata série de dados que por conveniência computacional tem a forma de uma sequência muito grande de números.
Albdorf embarca entusiasticamente na nova prática, colecionando fotografias que encontrou na internet de locais em Yosemite, e tirando print screens do Google Street View em Yosemite. Fazendo novamente uso das potencialidades da pós-produção digital, compõe, com essas imagens e com outras que fotografou em estúdio, fotografias que no seu conjunto criam uma ficção sobre uma viagem ao parque de Yosemite.
A componente ficcional está presente em vários níveis: se por um lado há a tentativa de criar uma narrativa interessante e coerente, há também, por outro, a tentativa de criar a ilusão de que o fotógrafo esteve realmente em Yosemite, sem na verdade ter visitado os locais fotografados. Albdorf trata ele mesmo de destruir a ilusão, deixando marcas visíveis do seu trabalho de pós-produção, um piscar de olho que atenua o impacto do quebrar do feitiço (ou do desfazer da ilusão), e que nos diz que Albdorf esteve sempre conscientemente a levar-nos aos sítios que nos queria mostrar, que esteve sempre em controlo.
Na sua mais recente série de fotografias, A miss is as good as a mile, apresentada em 2018, Albdorf, contudo, abdica do seu controlo total. A proliferação de imagens nos computadores ligados à internet global continua no centro das suas atenções, levando-o a questionar-se se as imagens que nos ajudam a definir o mundo em que vivemos da mesma forma que os clichés alpinos nos ajudam a definir a Áustria; se essas imagens podem ter sido criadas por um computador ou muitos computadores ligados uns aos outros. A realidade virtual torna-se totalmente um produto do silício, nunca tendo ocupado o espaço mental de um humano.
A miss is as good as a mile conta a história de uma suposta viagem de férias mediterrânicas, replicando a vista de uma montra com souvenirs na forma de estatuetas romanas, ou a de um vulcão fumegante, ou ainda a de uma tarde passada na praia. Albdorf já fez férias nessa parte do globo, contudo nunca a visitou em trabalho fotográfico. As suas fotografias são portanto o resultado do seu processo criativo de fusão de imagens que foi encontrando em vários sítios, na internet ou em livros, e de imagens de objetos que criou no seu próprio estúdio. A fusão das várias imagens foi parcialmente concretizado por um software programado com algoritmo apropriado, produzindo resultados ao mesmo tempo estranhos e familiares. Ao software é dado apenas parte da imagem-fonte,que este tenta depois reconstruir algoritmicamente na totalidade. Assim podemos ver uma série de estátuas romanas transformando-se umas nas outras, cada uma com a marca visível do trabalho do software, com uma parte do seu corpo deformada numa massa disforme.
O trabalho fotográfico de Thomas Albdorf está assim ligado pelos temas comuns da exploração de objetos esculturais e de realidades construídas perpetuadas no tempo, pela interrogação sobre o que permite distinguir o real do virtual, e sobre a própria conceção da fotografia na era digital.
A exposição “A Room With a View” está patente no FOAM em Amesterdão até 9 de setembro de 2018.
Podem consultar aqui o site do fotógrafo
E aqui o site do Foam
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