Quatro aventuras por dois gigantes
Texto: NUNO GALOPIM
A história começa no estúdio que o próprio Holger Czukay ajudou a construír. Não o original, num castelo, onde haviam nascido os primeiros discos dos Can, mas uma segunda versão, numa antiga sala de cinema, que corresponde a um período mais tardio da obra do grupo e pelo qual, além dos elementos do grupo, outros músicos tinham passado. Holger Cuzukay tinha ficado como um dos proprietários das instalações e preparava ali a gravação de um novo álbum (que ganharia forma sob o título Rome Remains Rome). Tinha colaborado, em 1984, na gravação de Brilliant Trees, o álbum de estreia a solo de David Sylvian e nos projetos instrumentais que se seguiram, ou seja, o EP Words With The Shaman e o álbum Alchemy: An Index of Possinbilities (que, de resto, inclui o EP). Com uma participação vocal para o seu álbum em vista, Holger Czukay desafiou David Sylvian a juntar-se a si no estúdio. E ali, olhando para os instrumentos alinhados, ao mesmo tempo que se falava da sessão que registariam no dia seguinte, Sylvian sentiu o impulso de os experimentar. Sobretudo os teclados. A música improvisada ainda não tinha na sua carreira o peso que mais tarde alcançaria, quer com o projeto Rain Tree Crow ou os álbuns a solo Blemish ou Manafon. Mas em Steel Cathedrals, experiência de música vídeo que levara recentemente a cabo com Ryuichi Sakamoto, o desafio da improvisação tinha dado primeiros passos. Sem o saber, naquela noite, iria escrevia um segundo episódio daquela história.
David Sylvian tinha passado alguns minutos a experimentar um órgão, ensaiando o desenho de um suave drone que foi repetindo, desenhando uma textura ambiental. Procurou depois elementos para juntar a esse drone, e tocou uns 10 a 15 minutos. Quando tirou os dedos das teclas reparou na voz de Holger Cuzaky, que então se fez ouvir no estúdio, dizendo-lhe que podia mudar de instrumento e continuar. Sem o saber tinha sido gravado. E dessa improvisação, que ocorreu ainda antes de Secrets of The Beehive (1987) nasceu a base de trabalho para um álbum que editaria em 1988 com o título Plight + Premonition. Plight (The Spiraling of Winter Ghosts), que abre o alinhamento, nasceu dessa sessão inesperada. Houve trabalho adicional, assim como uma outra sessão na qual Czukay ia lançando ideias às quais Sylvian foi respondendo, surgindo assim a segunda parte desse registo em parceria, Premonition (Giant Empty Iron Vessel).
Uma segunda colaboração, pensada em moldes diferentes (já sem surpresas mas ainda em registo de improvisação) gerou, por sua vez, os temas que em 1989 chegaram a disco como Flux + Mutability. Neste segundo disco cada um dos dois músicos toma uma das faces por laboratório de experiências num terreno na verdade não muito distante do sugerido no álbum conjunto de 1988. A construção concetual de Flux (A Big, Bright, Colourful World) ficou entregue a Holger Czukay e a de Mutability (A New Begining is in The Offing) a Sylvian, embora uma vez mais a gravação de ambas as partes do disco envolvesse não apenas a participação dos dois músicos (se bem que em Mutability Cuzkay apenas tenha contribuído na mistura), como ainda a chamada a estúdio de alguns parceiros de trabalho, entre os quais Markus Stockhausen ou, como havia já acontecido em Plight + Premonition, Jaki Liebzeit, dos Can.
Os dois álbuns definem um corpo de trabalho que tem em comum os diálogos entre David Sylvian e Holger Czukay, definindo quatro peças que têm ambientes criados por teclados, guitarras, ondas de rádio, sons incidentais e os elementos que os colaboradores chamados a estúdio lhes juntaram. A reedição agora lançada toma-os (e bem) como um díptico que resolve em si um ciclo de experiências que aprofundaram em Sylvian o interesse pela exploração da improvisação como método de trabalho. Plight apresenta-se aqui numa nova mistura criada por David Sylvian em 2002. Este lançamento surge pouco depois de uma recente reedição, em vinil, de Dead Bees on a Cake, por ocasião do Record Store Day deste ano. Que tal, a seguir, um Blemish em vinil?
“Plight & Premonition / Flux & Mutability”, de David Sylvian & Holger Czukay, está disponível em 2LP, 2CD e nas plataformas digitais numa reedição da Gronland.
E aqui as capas originais:
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