Dez discos para ouvir no centenário de Leonard Bernstein (6)
Seleção e textos: NUNO GALOPIM
O tempo tem vindo a dar razão aos que cedo reconheceram em Leonard Leonard Bernstein (1918-1990) não apenas um dos grandes maestros e comunicadores do seu tempo, mas também das mais vivas vozes de uma identidade musical americana e, ainda, um dos grandes compositores do século XX.
Herdeiro de, por um lado, toda uma herança maior da música ocidental (admirador de Mahler, de quem foi importante divulgador num tempo em que a sua música não morava ainda entre o repertório sinfónico global como hoje conhecemos) e, por outro, atento observador da América ao seu redor, fez da sua música uma expressão do seu aqui e do seu agora, cruzando linguagens várias, muitas então vistas como realidades exteriores aos “cânones”, encontrando no jazz, na música popular e até mesmo nos palcos da Broadway as referências que lhe deram, devidamente assimiladas, importantes marcas de identidade.
Figura de importante perfil político, fez da sua música, sobretudo a que expressava uma carga narrativa, espaço para aprofundar mais ainda toda uma série de visões sobre a cultura e sociedade americanas do século XX. Agora que se assinala o seu centenário (nasceu a 25 de agosto de 1918) lembramos discos que nos dão um olhar panorâmico pela soa obra como compositor.
“Serenade after Plato’s ‘Symposium’”
(Columbia, 1956)
É como um concerto para violino e orquestra, mas que não se apresenta formalmente nesses termos. Leonard Bernstein tinha lido recentemente o Simpósio de Platão e foi do impacto que esse texto em si causou que surgiu uma ideia de partir dali mesmo para construir uma peça de tonalidades líricas que refletisse sobre as diversas expressões do amor. Obra em cinco andamentos para orquestra, Serenade after Plato’s ‘Symposium’ convoca evocações das sete figuras que discursam no texto de Platão (entre as quais estão Sócrates, Aristófanes ou Alcibíades) e os conteúdos do que ali dizem.
Apesar de ser uma obra que implica o trabalho de uma orquestra, Serenade destaca claramente o papel de um violinista, que assim se assume como solista, como se de um concerto para violino afinal de tratasse. E, de facto, desde que foi estrada no La Fenice, em Veneza, em 1954, esta obra sempre comunicou prioritariamente o papel do violinista chamado à sua interpretação.
Foi Isaac Stern o primeiro a dar vida a esta música, não apenas nessa noite no La Fenice como, dois anos depois, na primeira gravação, com a Symphony of The Air (com elementos da antiga orquestra da NBC), editada então pela Columbia. Ao longo dos tempos nomes como os de Gidon Kremer, Anne Sofie Mutter ou Hillary Hahn contam-se entre os muitos que já registaram interpretações em disco do Serenade de Bernstein.
Interpretação pela London Symphony Orchestra, dirigida por Antonio Pappano, com a violinista Janine Jansen.
“West Side Story”
(Columbia, 1961)
Mais que apenas um feito maior da história do musical norte-americano, West Side Story é um marco cultural do século XX, espelho não apenas das artes que convoca (o cinema, a dança, a música) mas também do espaço social que retrata (a multiculturalidade e a xenofobia na América dos cinquentas).
A ideia era a de repensar a medula clássica do Romeu e Julieta de Shakespeare em novo contexto. E sob sugestão de Leonard Bernstein, apontou-se o repensar da trama à Nova Iorque daquele tempo, transformando o jogo de ódios entre as duas famílias de que Shakespeare deu conta num choque entre populações, de um lado os americanos caucasianos de herança europeia, por outro os chegados mais recentemente de Porto Rico, cada um dos grupo representado pelo seu gangue, a luta pelo território – um quase nada pelo qual dão quase tudo – parecendo dar sentido a um quotidiano onde pouco mais parece acontecer. É claro que não falta o Romeu nem a Julieta. Ele é Tony, americano descendente de polacos e trabalha num pequeno bar. Ela é Maria, porto-riquenha, irmã do líder dos Sharks (o respetivo gangue). Olham-se num baile. E, contra tudo e contra todos, não pensam mais senão um no outro. Não falta o tempero de tragédia e, conhecendo Romeu e Julieta, basta adaptar a ideia ao novo tempo e lugar…
Estreado em palco, na Broadway em 1957, West Side Story revelava desde logo uma vibração muito peculiar não apenas dadas as características de uma história que parecia, de facto, falar aquele tempo e aquela gente, mas também pela música de Bernstein, que juntava à tradição do musical (e a toda uma formação clássica) o fulgor do jazz e dos ritmos latino-americanos. Com letras de Stephen Sondheim, canções como Maria, Tonight, Somewhere ou America começavam a trilhar o caminho que delas fez verdadeiros standards, ao mesmo tempo que as danças sinfónicas davam primeiros passos numa vida que delas faz ainda hoje presença regular em programas de concertos de várias orquestras e maestros.
A adaptação ao cinema contou uma vez mais com o trabalho exigente do coreógrafo Jerome Robbins, que inclusivamente co-assinou a realização com Robert Wise. Além da música e das impressionantes sequências de dança, o filme reflete ainda um cuidado ao nível da direção de fotografia, os jogos intensos de cores sublinhando os contrastes entre os grupos e lugares, criando uma ideia de encanto característica do palco sem todavia abafar nunca as marcas sociológicas do mundo real que definiam o conflito que serve de base à narrativa. O filme deixou um legado marcante. Muitas das canções conheceram depois novas versões e novas vidas. Mas entre as muitas versões e gravações nenhuma superou ainda a que serviu a banda sonora da versão para cinema de 1961.
O trailer original do filme
As “danças sinfónicas” nos BBC Proms, com Dudamel
“Jeremiah Symphony”
(CBS, 1962)
Longe de representar a face mais popular da sua obra, as três sinfonias de Leonard Bernstein (compostas entre as décadas de 40 e 60) representam um dos espaços através dos quais o compositor expressou mais profundamente não apenas ecos da sua identidade judaica mas também manifestações de uma muito pessoal demanda espiritual.
A Sinfonia Nº 1 – Jeremiah data de 1942. É uma obra intensa que, se por um lado traduzia uma atenção do músico ao contexto de tempo, lugar e vivência cultural que o envolvia (captando na tradição do teatro musical uma marca de identidade da mesma forma como Gerswhin havia assimilado o jazz alguns anos antes), por outro vincava a assombração de alguém que, de ascendência judaica, não deixava de refletir sobre um tempo de perseguição e morte que se vivia, então já em plena II Guerra Mundial.
Esta edição em disco, que corresponde à segunda gravação da sinfonia por Bernstein (mas desta vez com a New York Philharmonic), inclui ainda a Sinfonia Nº 3 de Roy Harris.
A obra sinfónica de Bernstein inclui outras duas sinfonias:
A Sinfonia Nº 2 (com o subtítulo The Age Of Anxiety) nasceu em finais dos anos 40 na sequência de uma viagem a uma Europa devastada pela guerra e da consciência da real dimensão do holocausto. O seu verdadeiro momento inspirador foi, contudo, a leitura de um extenso poema de W.H. Auden – com o título The Age Of Anxiety: A Barroque Eclogue, vencedor de um Pulitzer em 1948 – que acabaria por representar o “argumento” para uma sinfonia que propõe uma narrativa. Ali se conta a história de quatro solitários que se encontram num bar nova iorquino e da noite que se segue. Auden, todavia, não manifestou particular apreço pela obra inspirada no seu poema.
A morte de John F. Kenney, poucas semanas antes da estreia da terceira sinfonia de Bernstein levou o compositor a dedicá-la ao amigo e político recentemente desaparecido. A Sinfonia Nº 3 – Kaddish, deve o seu nome a uma oração fúnebre judaica que, todavia, não refere a “morte”. A obra teve estreia em Israel numa versão original na qual Bernstein pedia, especificamente, que a narração fosse feita por uma voz feminina. A sinfonia seria revista em 1977 e uma das alterações fez com que deixasse de haver uma restrição de género neste caso.
Uma nova gravação da Sinfonia Nº 1, por Antonio Pappano, com Marie-Nicole Lemieux
“Mass”
(CBS, 1971)
A Missa (Mass, no original), de Bernstein, nasceu para surpresa de tudo e todos quando, em 1971, o John F. Kennedy Center For Performing Arts (em concreto, Jacqueline Kennedy) lhe encomendou uma obra para ser estreada na noite da sua inauguração, não especificando junto do compositor (e também reconhecido maestro) que tipo de peça pretendia. Bernstein tinha há muito uma admiração por Kennedy e, de resto, havia-lhe dedicado a sua terceira sinfonia, na sequência do assassinato do Presidente em Dallas, em 1963. De ascendência judaica, Bernstein optava pela composição de uma missa (um dos géneros mais importantes da tradição musical na velha Europa cristã) não apenas para assinalar o facto de Kennedy ter sido o Presidente católico apostólico romano dos EUA, mas também porque, nem inícios de 70, a Igreja vivia tempos de mudança (da emergência da teologia da libertação à revisão de velhos dogmas e rituais), que assim fazia questão de sublinhar.
A Missa, de Bernstein, mais que apenas uma obra religiosa, é uma obra política, servindo a forma musical (e a sua carga histórica) como catalisador para uma demonstração do poder unificador das artes em volta da memória de uma figura e a crença uma ideia. Na sua Missa, Bernstein cruza a exploração concreta de questões do foro religioso (que abordara já, tanto na Sinfonia Nº 3 e nos Chichester Psalms, para referir dois possíveis exemplos), com uma reflexão sobre as concretas condições sociais da vida do dia-a-dia, que por si fora já abordada na música de West Side Story. Os dois mundos, não apenas temáticos, mas igualmente musicais (juntando aqui, claramente, tradições da música erudita a marcas da cultura popular, nomeadamente a herança do musical), juntam-se numa obra absolutamente espantosa, que apela a uma necessidade de espiritualidade. Musical, política e socialmente, a Missa de Bernstein é um retrato do seu tempo. Teatralizada, cruza linguagens, sublinhando também na sua interpretação a noção de diversidade que a própria música em si transporta.
O historial de gravações da Missa começa a juntar já uma série de títulos que faz desta uma das obras de grande fôlego de Bernstein com mais interpretações registadas em disco. Esta edição em disco, que data de 1971, corresponde à gravação com o elenco original da estreia no Kennedy Center, com Alan Titus como voz protagonista. Leonard Bernstein dirige um conjunto de músicos expressamente reunidos para a ocasião. Edição em álbum duplo em vinil, no formato de caixa, mais tarde disponível em CD duplo.
“Candide”
(Deutsche Gramophon, 1989)
Originalmente estreada na Broadway, em 1956, a opereta Candide começou por dividir opiniões. A música, contudo, revelava uma vez mais as capacidades de cruzamento de linguagens (e de comunicação) de Bernstein, tendo a Abertura sido tocada por mais de cem orquestras no ano seguinte… Foram, todavia, precisos 33 anos e várias revisões (convocando muitas delas novas contribuições na reescrita do libreto), para que Bernstein encontrasse a desejada “versão definitiva” de Candide. O tom satírico do texto de Voltaire, inicialmente publicado em 1759, encontrou a adaptação mais fiel à sua identidade, ao mesmo tempo revelando o melhor de Bernstein como compositor atento às realidades sociais e políticas do seu tempo, não faltando citação subliminar aos “trabalhos” da comissão do senador McCarthy numa cena que tem a Lisboa pós-terramoto de 1755 por cenário.
A versão de 1989, que aceita adendas ao texto por figuras que vão de Stephen Sondheim e Dorothy Parker a Bernstein e à sua mulher, Felícia, conheceu primeira gravação em Londres, em dezembro de 1989, sob direcção do próprio Bernstein (com o mesmo elenco usado numa apresentação pública da qual nasceu uma edição de um DVD). O carácter operático da revisão “definitiva” da obra levantou debate sobre como a definir, se opereta, se ópera, se ópera cómica… Na verdade é tudo isso, com tempero de sátira e melodrama, como sublinharia a crítica, claramente favorável, publicada em 1992 na Gramophone. Esta versão “definitiva” chegou a disco em gravação ao vivo de uma atuação dirigida pelo próprio compositor, frente à London Symphony Orchestra, contando com as vozes de, entre outros, Jerry Hadley, June Anderson, Adolph Green, Christa Ludwig e Nicolai Gedda.
Leonard Bernstein apresenta “Candide”
A sequência lisboeta de Candide é este “Auto de Fé”
O hilariante “I Am Easily Assimilated”, com explicações de Bernstein e a voz de Christa Ludwig como ‘the old lady’.
“On The Waterfront”
(Soundtrack Factory, 2014)
Das três experiências de Leonard Bernstein no cinema duas decorreram diretamente de adaptações ao grande ecrã de musicais antes estreados em palco – On The Town e West Side Story – e apenas uma nasceu, absolutamente inédita, para a produção de um filme. Foi em 1954 numa parceria com Elia Kazan, com Marlon Brando, Karl Malden e Eva Marie Saint no elenco, juntando a música de Leonard Bernstein um entre os muitos argumentos que fizeram de Há Lodo no Cais (On The Waterfront no original) um dos maiores clássicos do seu tempo.
Se o filme cedo ficou inscrito entre os episódios mais marcantes da história do cinema na década de 50 já a banda sonora acabou por ser mais vezes recordada através de uma suite orquestral que juntava elementos de várias sequências e que foi surgindo em discos, em alguns casos sob direção de orquestra do próprio Bernstein.
Se bem que se note a presença de “outras músicas” em diversas obras de Bernstein, na banda sonora que compôs para Há Lodo No Cais, que traduz magnificamente os ambientes visuais (e narrativos) do filme, o compositor usou em alguns momentos, e com protagonismo evidente, alguns elementos jazzísticos, que fazem assim desta música não apenas uma peça companheira de uma história de das imagens que a contam, mas também um episódio na história da assimilação pela música orquestral de elementos culturais de tempo e de lugar. No fundo, marcos que asseguram identidade.
Em 2014 um lançamento em CD juntou a versão integral da banda sonora, recuperando o registo original de 1954 usado no filme (com a orquestra da Columbia Pictures, dirigida por Morris Stoloff). Uma reedição, em 2017, juntaria ao alinhamento a mais célebre suite orquestral, numa gravação de 1960 pela New York Philharmonic Orchestra, aqui já com o próprio Bernstein à frente da orquestra.
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