Discos para não deixar as memórias em silêncio
Texto: NUNO GALOPIM
Entre as investidas pelos baús da memória do catálogo da editora holandesa Music From Memory há uma mão cheia de discos que vale a pena ter em conta. Sob risco de deixar de fora alguns outros títulos marcantes, aqui fica a sugestão de cinco que podem justificar um ponto de partida para escavar mais entre um catálogo que começa a mostrar uma coleção já significativa de referências.
Começamos por Richenel. Na alvorada dos oitentas era uma figura exuberante que marcava presença na cena noturna de Amesterdão. Desafiava códigos normativos de identidade de género, ideia que a sua música explorou em caminhos que cruzavam terrenos da pop e do eletro, servindo-os com uma voz de escola R&B. Muitos poderão conhecer o single L’Esclave Endormi, que editou pela 4AD Records, encetando uma ligação à editora que o convocaria depois para o projeto This Mortal Coil. No final dos oitentas teria êxito mainstream com o single Dance Around The World. A proposta da Music From Memory é a de uma redescoberta anterior a estas experiências. E começou pela edição do seu mini LP de estreia La Diferencia, de 1982, originalmente apenas disponível em cassete. É uma pérola de eletro pop desafiante e cativante, com o contraste vocal sublinhado com tons R&B que em boa hora aqui é resgatada ao esquecimento.
Uma segunda proposta surge em dois volumes de gravações do início de carreira do japonês Kuniyuki Takahashi, músico e DJ com obra desenhada em vários terrenos da música eletrónica que aqui é revisitado com um conjunto de temas originalmente lançados entre 1986 e 1993. Com o título comum Early Tape Works 1986-1993, estes dois volumes revelam uma demanda ambiental que não esconde afinidades com as visões de um Brian Eno mas que junta marcas de personalidade, algumas delas sublinhando a geografia cultural japonesa. Apesar de ocasionalmente aceitando arquitetura rítmica, a maioria das composições procura a definição de paisagens que nascem de drones, suaves e discretas melodias e, por vezes, a adição de elementos que acrescentam uma dimensão de espaço. É uma música melancólica, por vezes parecendo querer resgatar ecos de memórias. O segundo volume é particularmente deslumbrante.
Para concluir esta viagem de descoberta (para quem não conhecia a coisa, claro) do catálogo da Music From Memory fica a sugestão de duas compilações que revelam a vastidão dos universos que aqui estão a ser revisitados e, ao mesmo, tempo, a deliciosa paleta de sabores que assim não vamos esquecer. Uneven Paths: Deviant Pop From Europe 1980-1991 é uma seleção de temas que narram caminhos menos conhecidos (mas bem estimulantes) que a pop europeia traçava nos oitentas, fora dos olhares que se concentravam não apenas nos focos mainstream como até nos fenómenos indie de maior mediatização (e origem em mercados com poder de exportação). Semelhantes caminhos, embora com matéria prima na pop brasileira, podem ser (re)descobertos em Outro Tempo: Electronic and Contemporary Music From Brasil 1978-1992, aqui concentrando atenções nas franjas mais inventivas (e talvez menos conhecidas) da música eletrónica. Piry Reis, Nando Carneiro, Cinema, As Mulheres Negras, Andréa Daltro, Anno Luz… Se não conhece estes nomes tem aqui bom remédio.
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