Os discos de Prince que agora chegam ao ‘streaming’ (parte 1)
Texto: NUNO GALOPIM
“The Gold Experience”
(1995)
O confronto entre Prince e a sua editora, a Warner, estava a gerar uma etapa de cada vez mais difícil relacionamento. Depois de um ano sem novidades (1993), no qual a editora lançou uma primeira antologia de Prince, o músico entregou dois álbuns prontos a editar, desejando que ambos fossem lançados no mesmo dia. O seu dia de aniversário. Um deles, juntando algumas gravações de arquivo, era assinado como Prince e tinha por título Come. O outro, a editar como o(-> era integralmente composto de temas novos… É neste período de impasses, reuniões (nas quais a dada altura começaria a comparecer com a palavra “slave” desenhada na face) e decisões adiadas, que, por si mesmo, através da NPG Records que então cria, apresenta o single The Most Beautiful Girl In The World e com ele consegue o melhor momento no mercado desde os dias de Purple Rain, conseguindo inclusivamente o seu primeiro número um na tabela de singles do Reino Unido.
A Warner opta por lançar apenas um dos álbuns, escolhendo o que surgia sob o nome de Prince. O outro fica em stand by, chegando Prince a afirmar então que nunca veria a luz do dia… E não era a primeira vez que sucedia, tanto que criações suas já gravadas, como o Black Album ou Crystal Ball estavam há muito na gaveta e ainda longe de editadas. A sua crença no facto de não ser possível a edição do álbum que apresentara sob o seu novo nome impronunciável levou mesmo a que centrasse nas suas canções uma digressão que então leva à estrada, chegando mesmo a sugerir aos seus admiradores que levassem gravadores para os concertos…
Os resultados relativamente magros de Come não juntaram elementos muito favoráveis ao debate (apesar de hoje, à distância, um reencontro com o disco revelar nele um dos seus mais interessantes episódios da sua obra editada em meados dos noventas). Em 1994 o disco funk arquivado anos antes e entretanto transformado num bootleg amplamente pirateado pelo mundo fora é finalmente lançado numa edição limitada como, simplesmente, The Black Album. E em finais de 1995, numa altura em que as negociações de “divórcio” com a Warner começavam a ser encaminhadas no sentido de ser encontrado um entendimento, The Gold Experience vê finalmente a luz do dia.
Com resultados comerciais ligeiramente superiores aos de Come, embora longe dos de outrora, The Gold Experience revelou contudo aquele que era o disco criativamente mais desafiante e estimulante de Prince em algum tempo. Firme nas suas raízes funk (sublinhadas, por exemplo, em P Control que abre o alinhamento) e r&b (que podemos escutar em Eye Hate U, um dos singles), o álbum apresentava-se na forma de um percurso narrativo que tomava a voz de Rain Ivana como “operadora” de uma experiência virtual que, através das canções, explora os domínios do desejo, da sexualidade, do fetichismo.
Além da solidez concetual que define o álbum e de uma aposta na comunicação das novas canções através de uma sequência de singles, o álbum revela no seu alinhamento algumas canções de primeira linha. Uma delas é Gold, o terceiro single daqui extraído, que recupera as vivências pop que tinham feito alguns episódios notáveis da discografia de Prince nos anos 80 e que, nos noventas, pouca visibilidade em single tinham tido além do relativamente discreto 7, lançado já na etapa final de promoção do álbum conhecido como Love Symbol.
Este seria o derradeiro álbum criado como uma peça nova que Prince lançaria pela Warner até ao mais recente reencontro com a editora. Para fechar o acordo que os ligava entregaria uma banda sonora e dois conjuntos de material ainda inédito.
“Chaos and Desorder”
(1996)
O casamento com Mayte Garcia trouxe às primeiras semanas de 1996 uma nota de tranquilidade e felicidade aos noticiários sobre Prince. Havia mesmo assim um diferendo a resolver definitivamente com a Warner. E a nota de separação foi finalmente assinada, cabendo a Prince entregar mais dois discos à editora. Um deles seria feito de gravações do seu grande arquivo. O outro, criou-o num ápice.
Conta-se que Chaos and Disorder levou uma semana a nascer em estúdio, juntando a Prince alguns elementos da New Power Generation, cuja formação havia sido recentemente reformulada.
O disco aterrou como surpresa absoluta. Há muito que estávamos habituados a encontrar peças de fulgor rock entre as canções de Prince. Mas Chaos and Disorder estende toda essa relação ao alinhamento do álbum. A ideia poderia ser interessante, mas o alinhamento é desigual e o álbum rock de Prince não está de todo à altura dos melhores episódios elétricos que foi apresentando ao longo da sua discografia.
Este não é todavia um álbum medíocre. De resto, houve logo na altura uma clara divisão de opiniões, surgindo até mesmo uma crítica que apontava este como o melhor disco desde Purple Rain (opinião que só o gosto de quem assinou essas palavras poderá contudo justificar).
Há alguns momentos interessantes no alinhamento. As pontes mais teatrais (com presenças de metais) em Right or Wrong, o apelo bluesey mais abrasivo de Zannalee ou a puslação funk de I Rock Therefore I Am são episódios que mostram que o ecletismo característico das visões de Prince procurou aqui expressões possíveis num plano no qual, por ponto de partida, o músico colocou o rock’n’roll como matéria prima central a explorar.
Como single foi (bem) escolhido Dinner With Delores, canção de alma mais pop e menos angulosa que, na verdade, pode contar-se até entre os mais interessantes dos singles de Prince em meados dos anos 90. O single não teve todavia edição nos EUA, conhecendo apenas presença no mercado britânico onde não foi além de um discreto número 36.
Há um saboroso momento de viço funk e alma r&B em Dig U Better Dead, escondido quase no fim do alinhamento e que, num outro momento, poderia ter conquistado outra visibilidade. E, ainda, um belo exercício de busca de novos patamares cénicos nos arranjos orquestrais que fazem de Had U outra das peças esquecidas de um disco que acabou meio perdido entre o caos e desordem em que viveu a relação de Prince com os seus admiradores nesta etapa da sua carreira.
“Emancipation”
(1996)
Apesar de haver ainda um disco entregue à editora que antes o representava (e que seria só editado uns anos depois), a edição da banda sonora de Girl 6 e do álbum de estúdio Chaos & Disorder assinalou, em 1996, o momento da concretização da separação de caminhos entre Prince e a Warner após 18 anos de vida conjunta. Mas, mais do que esses dois discos que representavam parte do cumprimento das obrigações determinadas nas negociações que conduziram à separação, coube a um novo álbum de estúdio a afirmação de que, agora, o seu caminho estava nas suas mãos. E Prince não o fez por menos, lançando (ainda em 1996) um álbum triplo, concretizando assim o desejo outrora manifestado quando quisera editar Crystal Ball na segunda metade dos anos 80, projeto que recebera então um não da editora. Chamando muito sugestivamente Emancipation ao novo disco, apresentava então um corpo conjunto de 36 canções, que correspondiam a três horas de música gravada fazendo deste o álbum de estúdio mais longo da história.
De difícil digestão imediata, o álbum na verdade apresenta uma estrutura arrumada temática e esteticamente. O CD 1 guarda as peças mais la linha central das vivências pop (e seus diálogos) que há muito definiam um dos trilhos principais da obra de Prince, não surpreendendo que o single de apresentação, Betcha By Golly Wow (versão de um original de 1972 dos Stylistics) tenha sido extraído deste disco que abre o alinhamento. O CD2 é um ciclo de cações criadas como expressão do momento de felicidade que Prince passava após o seu casamento com Mayte Garcia (ocorrido em fevereiro desse ano) e do facto de estarem a esperar um filho (que morreria contudo pouco antes do lançamento do álbum, mas cuja batida cardíaca fora gravada numa consulta e usada em Sex in The Summer, que abre o segundo disco). Apesar das características eminentemente pop, a canção The Holy River, que foi o segundo single extraído do álbum, foi arrumada no CD2 mais pelas suas características temáticas do que pelas formas musicais a que recorre. Já o CD3 é um verdadeiro festim dançante, dominado pelo funk e por uma inesperada incursão de Prince pelos territórios da house.
Emancipation é um disco de grande fôlego e um dos melhores que Prince lançou nos anos 90, não repetindo contudo (como nenhum dos seus discos desta década), o patamar dos álbuns editados entre 1989 e 1987. A sua identidade como obra conceptual não significou um afunilamento das opções estéticas, conseguindo o disco ser até um dos mais estilisticamente diversificados da obra de Prince, caminhando desde os ambientes jazzy de Courtin’ Time (que bem que podia ter sido um single) ao flirt eletro em New World ou o hip hop em Da Da Da.
Outra das características mais interessantes de um álbum pensado com vistas largas é a abertura do alinhamento a diversas versões surgindo, além do single com a canção dos Stylistics, leituras de Prince para temas como La La La Means I Love You dos Delfonics, I Can’t Make You Love Me de Bonnie Riatt, What Can I Do de Ice Cube, ou One Of Us, que foi êxito global por Joane Osburne. E depois, há uma discreta, mas assinalável, presença de Kate Bush em My Computer.
Lançado numa festa em Paisley Park que convocou media e editores de todo o mundo (com uma atuação ao vivo transmitida em direto para a MTV), o álbum assinalou o inicio de uma nova forma de trabalhar os lançamentos de discos que Prince tomou por norma daí em diante. Neste novo quadro de negócio caberia a ele os custos de gravação e da criação dos materiais promocionais cabendo à editora com a qual chegasse a acordo para cada novo disco a tarefa de assegurar a distribuição do disco nos vários territórios. Aclamado pela crítica e conseguindo vendas assinaláveis (embora sem replicar as de sucessos anteriores), Emancipation, que foi editado ainda sob o nome 0{->, não podia ter dado a Prince melhor estreia para esta nova etapa da sua carreira discográfica.
“Crystal Ball” + “The Truth”
(1998)
Mesmo sem atingir os resultados desejados, Emancipation, de 1996, deu a Prince um momento de renascimento não apenas no plano da invenção criativa, mas também novas possibilidades de gestão para a sua obra gravada. E coube ao lançamento seguinte o teste definitivo de um modelo que lhe permitiu ensaiar gestos outrora economicamente arriscados com outra segurança. Crystal Ball, editado no formato de álbum quádruplo – juntando a três discos com gravações de arquivo um quarto disco de inéditos (a que chamou The Truth) – teve inicialmente uma vida comercial online, tendo inclusivamente representado, em finais de 1997, o primeiro caso de um álbum vendido pela Internet sem ter sequer uma edição física. O disco – em suporte de CD – só seria fabricado em inícios de 1998, tendo em conta o número de pré-encomendas entretanto pedidas, o que garantiu desde logo que o fabrico de unidades não aconteceria em quantidades que a procura não superasse. Estes primeiros exemplares, que asseguraram a rentabilidade da edição, foram todos eles destinados a venda postal, só depois surgindo um lançamento mais convencional, assegurado pela NPG Records. Longe de alcançar a procura de outros lançamentos anteriores, o mais ousado dos projetos editoriais de Prince não foi, de todo, um desaire comercial. Antes pelo contrário.
Apesar de mostrar o mesmo título de um projeto desenvolvido nos anos 80, Crystal Ball não corresponde a uma materialização tardia de um disco outrora arquivado antes de ser editado. Nascido como primeira descendência de Dream Factory, projeto que teria representado a derradeira criação de Prince com os Revolution, Crystal Ball sofrera progressivas mutações, algumas as canções acabando por surgir no alinhamento de Sign O’The Times, outras aparecendo, aos poucos, em edições seguintes, entre lados B de singles ou no alinhamento de álbuns posteriores, em alguns casos com novos arranjos e títulos.
Crystal Ball, na versão que chegou a disco em 1998, é tanto uma expressão de material de arquivo, como o é uma coleção de inéditos gravados em estúdio que, ao longo dos anos, tinham vindo a público na forma de vários bootlegs. O CD1 abre com o tema-título, uma longa composição gravada em 1986 que traduz um tempo de abertura da curiosidade estilística de Prince em todas a frentes, seguindo-se a canção que, gravada em 1985, teria dado título ao nunca editado Dream Factory.
O alinhamento, que junta dez faixas em cada um dos três primeiros CD, cada qual com cerca de 50 minutos de duração, tenta arrumar (sob lógica de afinação estilística), um conjunto de gravações de um intervalo entre 1983 e 1996. Com um peso maior do seu interesse pelas pontes possíveis de estabelecer entre o funk e terrenos pop/rock mais concentradas no CD2, o disco é sobretudo um passeio entre projetos, ideias e ensaios de soluções que traduzem pistas que os discos contemporâneos dessas gravações por vezes refletem, havendo também aqui ecos de parcerias, nomeadamente com os The Time e outros dos seus colaboradores mais próximos.
Os três primeiros discos deste álbum revelam um pequeno tesouro que nos permite agora antever um pouco o que poderá ser o baú de surpresas que poderá haver no “cofre” em Paisley Park tão acertadamente designado por The Vault. A edição em CD inclui um booklet de forma redonda que nos transporta aos temas e contextos de cada uma das canções.
Num jogo de contrastes com a diversidade dos climas abordados nos três primeiros CD de Crystal Ball, o disco “4”, que corresponde ao inédito The Truth, apresenta uma proposta em tudo inédita na obra até então levada a disco por Prince. Trata-se de um ciclo acústico, com adornos mínimos para além da relação entre a voz e a guitarra, e que expressa o clima emocional que, consideravelmente distinto de outros dos discos lançados em meados dos anos 90, passava já por algumas das canções de Emancipation.
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