Os discos de Prince que agora chegam ao ‘streaming’ (parte 2)
Texto: NUNO GALOPIM
“The Vault – Old Friends For Sale”
(1999)
O processo de negociações que conduziu à separação entre Prince e a Warner Records, editora para a qual gravava desde 1978, exigiu a entrega de dois álbuns. O primeiro deles, Chaos & Disorder, saiu ainda antes de lançado o triplo Emancipation (1996) que assinalou o inicio de uma nova etapa de liberdade empresarial para o músico. O segundo, que nasceria de uma reunião de peças gravadas entre meados dos anos 80 e o momento da separação, a meio dos noventas, surgiria no verão de 1999, a poucos meses da edição de um novo disco de estúdio, esse nascido de um acordo para um álbum só entretanto assinado com a editora Arista.
Com o título The Vault… Old Friends 4 Sale (aludindo “The Vault” ao mítico arquivo de gravações que Prince ia juntando em Paisley Park), o disco não traduz assim a construção de um álbum, mas antes uma reunião de gravações de várias etapas, reunidas num alinhamento só. A concentração de climas jazzy que caracteriza o disco surge assim não de um gesto criativo, mas de uma lógica de seleção entre um conjunto de peças já existentes.
Sendo também um arquivo de memórias pré-existentes, algumas delas também já antes disponíveis em bootlegs, The Crystal Ball (mesmo não correspondendo na versão em disco à ideia original que surgira com esse mesmo título nos anos 80) era mesmo assim um disco mais interessante não apenas na seleção de temas como na forma de pensar a sua arrumação num alinhamento só.
Há momentos e elementos interessantes a escutar aqui, naturalmente. E são os que refletem sobretudo sinais de uma demanda jazzística que tanto brota (sobretudo) de dinâmicas funk como de canções mais próximas das formas pop/rock que explorara num passado mais distante. E apesar de ter na balada de alma classic rock There is Lonely, mas com pontuados jazzy no solo de guitarra a meio, o melhor dos temas do disco e de mostrar em Old Friends 4 Sale um interessante arranjo para cordas de travo vintage (que caberia bem num filme de James Bond, embora não no genérico), foi escolhido como single a mais incaracterística balada Extradordinary que, sem surpresa, passou longe das atenções.
“Rave Un2 The Joy Fantastic” + “Rave In2 The Joy Fantastic”
(2000)
Poucas semanas depois de ter sido editado o álbum The Vault – Old Firends 4 Sale, que encerrava as obrigações contratuais com a Warner com um lote de gravações de arquivo que mostravam em comum um interesse na exploração de caminhos jazzy a partir dos espaços mais habituais na música de Prince, um novo disco cativava as atenções com outro fulgor. E, mesmo não tendo repetido patamares de sucesso de outrora, representou a mais acessível e interessante coleção de canções que Prince apresentava num disco desde os inícios da década de 90.
O projeto, ao qual chamou Rave Un2 The Joy Fantastic tinha uma história antiga, e chegara a tomar algum do tempo de Prince tanto em finais dos anos 80 como na autora dos 90, crendo-se que tenha servido até de berço a algumas ideias que depois migraram para álbuns como Lovessexy (1988) e Grafitti Bridge (1990).
Tal como acontecera com Emancipation – por oposição portanto aos entretanto lançados Crystal Ball (1998) e The Vault (1999) – este disco nascia de um conjunto de canções criadas com a intenção de, em conjunto, definir o corpo de um álbum. Mais do que em muitos dos seus discos recentes, havia aqui uma clara vontade em retomar pontes com as formas da canção pop/rock, assim como, e como se escuta logo no tema título, notam-se sinais de reencontro com um labor com eletrónicas, que auxiliam sobretudo o discurso rítmico. Ao mesmo tempo, através do leque de convidados que convocou – Gwen Stefani, Chuck D, Ani di Franco Maceo Pareker ou Sheryl Crow (de quem apresenta uma versão bem pop de Everyday is a Winding Road) – sublinhava uma vontade em vincar esse gosto em dialogar com outros, alargando as possibilidades musicais em jogo.
Como único single extraído do alinhamento deste álbum foi escolhido The Greatest Romance Ever Sold, o mais sólido dos singles lançados por Prince desde The Most Beautiful Girl in The World.
Ao contrário de The Vault, este disco não foi editado sob o nome de Prince. Deu assim mais um episódio ao “caso” dos nomes (uma dos tiros ao lado mais lesivos da obra de Prince nos anos 90). Este seria contudo o derradeiro álbum que apresentaria com a designação o{-> (habitualmente verbalizada como “love symbol”).
O disco nasceu no quadro de um acordo one-off assinado com a Arista Records, encetando um novo modelo de distribuição que levou Prince a trabalhar com várias grandes editoras daí em diante, não se comprometendo nunca com contratos de duração maior. E em busca de um renascimento, o disco deu-lhe um dos seus melhores episódios dos noventas… Fechando a década com o seu melhor disco em vários anos.
Em complemento a este disco foi lançado Rave In2 The Joy Fantastic, um álbum de remisturas que propõe versões alternativas às apresentadas em Rave Un2 The Joy Fantastic, representando assim uma experiência de grande fôlego num terreno mais próximo de novas visões da música de dança. O alinhamento inclui o inédito Beautiful Strange.
“The Rainbow Children”
(2001)
Ao contrário do que imaginara, o álbum Rave Un2 The Joy Fantastic não reativou a relação de Prince com o grande mercado que outrora dele tinha feito um criador de discos de sucesso. Foi mesmo assim um dos discos mais elogiados entre aqueles que editou na segunda metade dos anos 90 e teve depois uma versão remisturada editada sob o título Rave In2 the Joy Fantastic. Só não teve um sucessor imediato ao ritmo do que era então habitual nas rotinas discográficas de Prince. O que não quer dizer que não estivesse já a trabalhar num passo seguinte.
Na verdade havia um projeto em marcha, do qual deu a escutar alguns temas em sessões de audição em Paisley Park integradas em programas para os elementos do clube de fãs que entretanto ganhara nova dinâmica e começava a ganhar importante expressão, sobretudo na internet.
As novas canções, que editaria em 2001 sob o título The Rainbow Children – precisamente o mesmo nome usado num desses programas de abertura de portas aos elementos do clube de fãs -, mostravam em primeiro lugar uma expressão mais evidente do que nunca de uma devoção religiosa na lírica de Prince. Já havia, de discos anteriores, diversas manifestações de religiosidade claramente patentes nas suas canções. Mas a viragem do século coincide com uma etapa de mais profundo relacionamento de Prince com valores religiosos, o que teria impacte evidente não apenas nas novas composições qua ia apresentando mas também no modo como parecia interessando em reescrever peças de um passado que então transformava por linhas de um revisionismo beato que antes poucos poderiam imaginar.
Ao contrário dessas novas visões sob canções de outrora, o álbum The Rainbow Children nasceu claramente definido sob uma ética talhada em consonância com a fé e a moral pela qual Prince desenhava agora os seus dias, ações… e canções. Tematicamente define, sob uma lógica concetual, uma visão sobre questões como a espiritualidade, o racismo, a sexualidade, o amor, usando técnicas narrativas (que usam inclusivamente a criação de personagens e de um culto) para juntar as canções como parte de um todo no qual a sua crença religiosa é um dado estrutural central.
Musicalmente o disco procurava levar mais adiante as sugestões jazzy que as gravações reunidas recentemente em The Vault pareciam sugerir como caminho a explorar mais profundamente. E na verdade acaba por emergir aqui o álbum mais jazzístico de toda a discografia de Prince, definido num jogo de relações e diálogos que permite também a presença das marcas mais habituais na sua música.
O álbum assinalou o regresso às edições de novas gravações de estúdio sob o nome de Prince, arrumando assim definitivamente na memória dos anos 90 os devaneios por outros nomes que tinham causado afinal mais ruído do que ajuda à sua música. Precedido pelo single The Work, pt. 1 (que teve um primeiro lançamento via Napster antes mesmo de uma edição “física” mais convencional em CD single), The Rainbow Children não levou Prince a experimentar novo episódio de relacionamento com uma grande editora. Assim, e ao invés do que sucedera com Rave Un2 The Joy Fantastic, o disco teve apenas edição pela NPG Records, contando com uma distribuição pela Redline Entertainment. Conseguiu números aceitáveis de vendas, sem contudo retomar valores de outros tempos.
“One Nite Alone”
(2002)
À edição do álbum The Rainbow Children Prince fez seguir uma nova digressão na qual se apresentou com uma banda de formato substancialmente reduzido. Pouco depois apresentava um novo disco de estúdio que tomava como título o sugestivo nome pelo qual se apresentara a digressão: One Nite Alone.
Este foi um disco em tudo discreto. Gravado em diversas sessões num intervalo entre o ano 2000 e 2002 não traduz exatamente uma noção de solidão, já que em alguns temas se sente a presença da percussão de John Blackwell. Mas quase tudo resto fica pelas mãos e voz de Prince. O piano é aqui o seu principal companheiro instrumental, não impedindo a presença ocasional de outros teclados.
Mas é sobretudo dos diálogos para voz e piano que vivem as composições aqui registadas, revelando um registo de fragilidade invulgar na obra de Prince e que pode ter um companheiro direto no álbum de inéditos The Truth que incluída dentro do alinhamento do “quádruplo” Crystal Ball, quatro anos antes.
Os temas One Nite Alone, U’re Gonna C Me, Here on Earth e Pearls B4 the Swine tinham sido estreados online em 2001, via NPG Music Club, revelando novas dinâmicas de comunicação da sua música junto dos seus mais atentos seguidores. U’re Gonna C Me surgira, anos depois, com nova versão, no álbum MPL Sound.
Entre uma série de canções de sua autoria o alinhamento de One Nite Alone inclui uma versão de A Case of You, um clásico de Joni Mitchell que, cinco anos depois, seria incluido num disco de tributo à grande cantautrora, A Tribute to Joni Mitchell, no qual surgiam ainda nomes como os de Sufjan Stevens, Björk, k.d. lang, Caetano Veloso ou Brad Mehldau. A versão de Prince foi gravada em memória do seu pai, John L. Nelson, e tinha também surgido já no NPG Music Club.
“One Nite Alone… Live” + “One Nite Alone… The Aftershow”
(2002)
Não faltavam por aí bootlegs ao vivo de Prince quando, só depois da viragem do século (e por isso com mais de vinte anos de obra discográfica) o músico resolveu colocar no mercado um álbum live. É certo que havia já em Sign ‘O’ The Times (o filme) um registo de palco, embora enquadrado num filme-concerto que não esgotava as suas imagens nos momentos live… Assim como havia vídeos “live” como Prince and the Revolution: Live (de 1985), Lovesexy Live 1 + 2 (1989), Live! − The Sacrifice of Victor (1995) ou Rave Un2 the Year 2000 (2000), entre outros. Mas, até então, nem um registo ao vivo estava editado em disco (oficial)! E é sabido que Prince tinha por hábito registar o áudio das suas atuações (pelo que se imagina também aí a existência de um vasto arquivo a eventualmente explorar mais dia menos dia). Mas quando, em 2002, edita pela primeira vez um álbum ao vivo, está longe de nos dar o registo daquilo que seria o melhor dessa mesma história de palcos.
Prince poderia ter optado por construir uma coleção de fragmentos dessas gravações. Ou até iniciado uma série de lançamentos através dos quais poderia ter dado caução oficial a muitos dos registos ao vivo que já por aí circulavam. No fundo podia ter sugerido o caminho da chamada “bootleg series” de Dylan. Mas optou, e a escolha tem o valor sublinhado de quem sempre quis não viver das nostalgias de glórias passadas, por mostrar-se com uma gravação do seu presente em palco. E assim nasceu One Nite Alone… Live. Uma edição que começou por emergir via NPG Music Club e que depois se mostrou em vários formatos, juntando um disco (duplo) registado durante uma série de noites da digressão mais recente (a que se apresentava precisamente como One Nite Alone Tour) e um terceiro disco com gravações efetuadas em três concertos aftershow dessa mesma ronda de palcos. Há ainda uma versão em caixa, com um quarto disco, que corresponde ao álbum de estúdio também intitulado One Nite Alone.
O CD duplo gravado em palco não representa um registo de palco em regime solitário (apesar do título o parecer sugerir). Prince estava em cena acompanhado por Rhonda Smith (baixo), John Blackwell (bateria), Renato Neto (teclas), os saxofones de Candy Dulfer, Maceo Parker e Najee e o trombone de Greg Boyer, apresentando um alinhamento pelo qual tanto surgiam temas mais recentes como clássicos como When U Were Mine, Take Me With U, Raspberry Beret, Diamonds & Pearls, Nothing Compares 2 U, Starfish & Coffee ou Sometimes It Snow In April, alguns deles em novos arranjos. Já o terceiro disco, com o título individual One Nite Alone… The Aftershow: It Ain’t Over! traduz momentos de maior informalidade e liberdade, numa série de jams pelas quais passam também temas com história como Alphabet Street ou Girls & Boys, e aqui com Larry Graham no baixo.
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