Registo de uma sessão caseira, gravada por Prince ao piano num serão de 1983, o primeiro álbum póstumo do músico é uma deliciosa incursão na etapa em que começava a experimentar as linhas que definem as suas canções.

Não deve haver um arquivo de gravações mais falado (e até mesmo mitificado) do que aquele que Prince foi acumulando ao longo dos anos. Desde cedo na sua carreira Prince habituou-se a viver em casas que tinham estúdios de gravação. De resto o complexo de Paisley Park era quase o oposto: um conjunto der estúdios junto dos quais estava instala uma zona residencial na qual o artista fazia o seu dia a dia. Tinha, por isso, a possibilidade de gravar o que queria, como queria e às horas que o entendia fazer. E era frequente vê-lo, pela noite dentro, acompanhado por técnicos, ora com mais músicos ou apenas a solo, a registar ideias, esboços, jams, canções…

Depois de resolvido o debate legal que surgiu pelo facto de não ter deixado um testamento, o arquivo de gravações que deixou – ao qual há muito se chama The Vault – começa agora a ser explorado. O “cofre”… Na verdade não é a primeira vez que dali saem gravações que dão origem a discos. Foi assim em 1998 com três dos quatro discos do álbum quádruplo Crystal Ball e, um ano depois, com The Vault – Old Friends 4 Sale, disco que completava então um quadro de obrigações definidas no processo de afastamento da editora que o representara anos a fio. O que agora nos chega às mãos, poucos meses depois de um single que nos dava a conhecer uma maquete de Nothing Compares 2 U (também recuperada desse mesmo arquivo) representa a primeira edição de um álbum póstumo de Prince. E sabendo-se que ali foram identificadas já cerca de mil canções gravadas, muitos mais certamente surgirão nos próximos anos.

Piano and A Microphone 1983 não era na origem um álbum. Na verdade estas gravações, que estavam até aqui guardadas numa fita. Resultaram de uma gravação noturna, em 1983, com Prince sentado ao piano do estúdio montado na sua casa em junto ao Lago Riley, em Chanssen (no Minnesota), onde viveu entre 1981 e 1985. Há aqui versões de canções que depois gravaria em disco (sendo estas primeiras abordagens às suas formas originais), algumas versões e temas que acabaram por nunca sair do arquivo… até agora.

Aqui encontramos versões para voz e piano de Purple Rain (que daria título ao álbum que editaria no ano seguinte), International Lover (do álbum 1999 lançado no ano anterior), Strange Relationship (que apareceria, numa outra leitura, em Sign O’The Times) e 17 Days (canção que poucos meses depois surgiria no lado B do single When Doves Cry). O alinhamento inclui uma versão de A Case of You de Joni Mitchell e uma outra de Mary Don’t You Weep, uma canção espiritual do século XIX. E com estes estão canções que nunca levou a disco como Why The Butterflies, Cold Coffe & Cocaine (que estava muito provavelmente destinada aos The Time) e Wednesday (originalmente destinada à voz de Jill Jones na banda sonora de Purple Rain).

Pelo disco que nasce destas gravações passa um clima que tanto herda linguagens do rhythm’n’blues como do jazz (terreno que Prince exploraria em disco apenas alguns anos depois). E uma voz que, mesmo sabendo que estava a registar maquetes, se entregava às canções como se uma plateia ali estivesse à sua frente. Piano and a Microphone 1983 transporta-nos para um espaço de trabalho íntimo e pessoal. Ali encontramos o criador a experimentar as ideias antes de as moldar às formas finais… É uma intrusão agora consentida. E convenhamos que foi bem pensada como primeira abordagem a um mundo de registos que, sem dúvida, continuarão a manter Prince como uma força editorial viva ao longo dos próximos anos.

“Piano and a Microphone”, de Prince, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Rhino/Warner