David Lynch: por dentro do segredo
Texto: NUNO CARVALHO
Quem acompanhou ao longo das últimas décadas o percurso de David Lynch, seja através da sua obra ou das entrevistas que concedeu, sabe como o autor pode ser um pouco frustrante quanto a revelações ou interpretações. Lynch é uma figura esfíngica, enigmática e misteriosa, e sempre fez o culto de uma certa ocultação de informação e de explicações ou justificações, em nome da preservação do mistério em torno dos seus filmes e da sua pessoa. Mas nem é tanto uma questão de pose artística, antes uma crença no poder do enigma e de um certo “confessionalismo hermético”, como alguém que crê no mistério do mundo e não tem dele uma visão cínica e pragmática (hoje muito em voga) que tudo reduz ao explicável, ao mensurável e à desconstrução, peça por peça, do mecanismo na ilusão de que a soma das partes seria suficiente para obter uma resposta conclusiva. Além do mais, o realizador também não se presta à soberba a que são dados certos autores que gostam muito de fazer autoexegeses (do género, “o meu filme é uma parábola sobre isto e aquilo e aquela personagem é muito complexa e representa tal e tal”).
E, quanto a dados da sua vida privada e civil, além de ter o direito à reserva da privacidade, também nunca caiu na armadilha de sobre-expor factos para alimentar a tentação quase sempre muito equívoca de se fazerem correspondências e leituras biográficas das suas obras. De resto, é conhecida a história (que não aparece neste livro) da visita que Lynch fez a um psiquiatra numa fase de angústia psicológica e que acabou com um aperto de mão abrupto quando, questionado pelo artista sobre a hipótese de um eventual tratamento poder afetar-lhe a criatividade, o especialista não lhe garantiu que tal não pudesse de facto suceder. Uma história que ilustra bem o desejo do realizador de não dissecar nem analisar a sua mente de forma a não estragar a beleza do seu mistério, e de acreditar no poder subtil do inconsciente, da intuição, do instinto e de tudo aquilo que resiste à racionalização e a explicações e narrativas supostamente redentoras e catárticas.
Enfim, este preâmbulo serve para dizer que Espaço para Sonhar, a biografia da vida criativa e pessoal de David Lynch escrita a meias entre o cineasta e a jornalista e crítica Kristine McKenna, revela pela primeira vez muitos pormenores e histórias até agora desconhecidos e tem como objetivo ficar o mais próximo possível de uma biografia definitiva. Mas é claro que, no caso do biografado em questão, cuja riqueza interior e grandeza são tão vastas, “definitivo” é palavra que dificilmente se lhe aplica, e quem se ficar pela explicação da badana que nos diz que este livro é “uma oportunidade única de se ter acesso total à vida e mente de um dos artistas mais enigmáticos e profundamente originais do nosso tempo” vai ser, até certo ponto, induzido em erro, porque, apesar de exaustiva, esta biografia não garante acesso “total” ao mistério David Lynch, e sobretudo à sua mente, porque o realizador continua, ainda assim, em certos aspetos, a ser evasivo quanto a alguns segredos do seu processo criativo. Mas isto mesmo é reconhecido pelos autores, quando na introdução dizem que o livro é “uma crónica das coisas que aconteceram, e não tanto uma explicação acerca do que significam essas mesmas coisas”. E acrescentam: “Quando nos aproximávamos do final da nossa colaboração, deparámos com o mesmo pensamento: o livro parecia curto e não mergulhava profundamente na história que tínhamos em mãos. A consciência humana é demasiado vasta para caber entre capa e contracapa, e cada experiência tem demasiadas facetas para que possam ser todas contadas. Quisemos ser definitivos, mas, ainda assim, trata-se de um mero vislumbre.” Fica pois o aviso aos “jornalistas literários de badana”: não digam que este livro providencia acesso “total” à mente de David Lynch, porque se trata de fake news.
Contudo, no caso de Lynch, a sua característica “opacidade” não esconde nada de temível. Pelo contrário, toda a gente que McKenna entrevistou (mais de cem pessoas, entre membros da família, amigos, ex-mulheres, colaboradores, atores e produtores) é unânime em considerar o artista uma excelente pessoa (honesto, íntegro, leal, simpático, bem-humorado, generoso, afável com toda a equipa, com uma habilidade extraordinária para criar relações com as pessoas, dedicado, educado e gentil são alguns dos qualificativos com que é descrito por muitos daqueles que com ele privaram ou trabalharam). Aliás, um dos aspetos que mais surpreenderão quem pudesse fazer extrapolações em relação à sua personalidade a partir do tom predominantemente sombrio, estranho e por vezes abstrato da sua obra é o facto de ficarmos a saber, através de muitos depoimentos, que o cineasta é, afinal, e contrariando os preconceitos típicos de quem não o conhece pessoalmente, um homem luminoso, bem-disposto, com um enorme sentido prático, muito organizado e disciplinado, muito trabalhador (mas também exigente com os outros), um excelente diretor de atores (capaz de lhes dar dicas e ajudas muito eficazes e libertadoras), que ia ao supermercado como toda a gente (pelo menos, até se tornar demasiado famoso), que gosta de marcenaria, de construir objetos (para além do seu conhecido talento como artista plástico) e que faz arranjos e decorações em casa. Nada que, afinal, surpreenda muito quem tem consciência de que não se deve confundir o homem com a sua obra. Até porque, no caso de uma figura poliédrica e muito imaginativa como Lynch, as suas obras refletem sobretudo as muitas faces (e facetas) que o seu espírito fértil e imaginoso engendra. E a amplitude oceânica dessa imaginação não cabe de forma nenhuma nos limites do corpo civil (e civilizado) do artista.
Como não podia deixar de ser, uma biografia de David Lynch tinha de ter uma particularidade distintiva. Neste caso, é um texto escrito a quatro mãos mas que alterna (é literalmente alternativo), a cada capítulo, entre a versão da jornalista (que utilizou as ferramentas de pesquisa próprias do biógrafo) e a do realizador referente a um mesmo período temporal. McKenna escreve um capítulo, revisto por Lynch, e depois este redige uma espécie de resposta, caldeada pelas memórias dos entrevistados, a esse mesmo capítulo, o que resulta em pares de capítulos sobre a mesma etapa da sua vida e carreira, mas, no caso das páginas escritas pelo cineasta, com algumas mais-valias que decorrem da sua perspetiva mais intimista e subjetiva. Ficamos a conhecer muitíssimo da vida e das histórias dos processos criativos, da preparação, das rodagens e dos problemas, mágoas e boas recordações de todo o processo de feitura de cada um dos seus filmes (que seria exaustivo estar aqui a aflorar e cujo prazer da descoberta – e são imensas as revelações até agora desconhecidas do grande público – não vamos retirar ao leitor). Fica um dado curioso, em jeito de remate: apesar das várias mulheres com quem teve relacionamentos, e que sempre desempenharam um papel importante na manutenção e reacendimento da sua chama criativa, e dos quatro filhos que tem, David Lynch faz questão de dizer mais do que uma vez que o amor da sua vida foi o seu cão Sparky. Só pode mesmo ser uma boa pessoa.
“Espaço para Sonhar”, de David Lynch e Kristine McKenna, é uma edição da Elsinore com 698 páginas.
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