A Era Especial
Texto: GONÇALO COTA
Os álbuns têm a capacidade, mesmo que algumas vezes não se o faça de forma explicita, de contar a história de quem os canta. Ressoam, em si, marcas do tempo. Nos discos de Márcia, a sua rota invade cada uma das suas composições – a emancipação, a maternidade, as condições materiais da vida, a sua identidade e identidade dos outros. Uma
meditação interessante é escavar cada tema e encontrar a arqueologia de quem é Márcia (ou de quem nos canta) em cada momento. Simultaneamente, perscrutar-lhe as influências musicais, quem os produz e o resultado muy saudáveis parcerias que permanentemente estabelece – foi de resto a regravação de um tema de um primeiro EP, “A Pele que Há em Mim”, com JP Simões, que serviu para riscar um fósforo que cresceu para iluminar um percurso cheio bons momentos.
Mas é injusto reduzir o seu percurso e a capacidade como cantautora a este momento. Márcia tem o brilhantismo de construir uma lírica que exige uma imagem, uma narrativa. As vivências insinuam-se nas palavras e dessas palavras emergem imagens num instante: pelas fendas de cada uma das novas canções parecem nascer coisas palpáveis com vontade desegregar a tristeza, o medo. O enunciar daquilo que se sente enquanto tudo ainda não amanhece. As palavras são a verdadeira morada de “Vai e Vem”.
Mas também os arranjos descomplicados, desprovidos de pormenores, longe do barroco e do excessivo. Arranjos absolutamente necessários também para a construção da identidade musical de Márcia desde o início. Mas neste, que é o seu quarto álbum, há uma ligação mais estreita com o som das guitarras elétricas (escutamo-las em pleno em “Manilha e Corredor”), permitindo construir uma maior organicidade, um corpo uno (mas não uniforme) de momentos com várias velocidades e funções. Um corpo que Márcia vem a desenhar há, pelo menos, dois anos: a sóbria e delicada “Agora” perfilou com uma das concorrentes na edição de 2017 do Festival da Canção.
São também estas guitarras que insistem, e ainda bem, em repescar semelhanças com a canadiana Feist – e este paralelo não tem o seu ponto zero em “Vai e Vem” – na construção de uma sonoplastia simultaneamente pop, folk e soul que envolve o núcleo duro que são as palavras (e não o seu inverso). Mas esta não é a principal companhia de Márcia. Em redor das doze faixas, erguem-se colaborações com António Zambujo, o recorrente Samuel Úria e com Salvador Sobral, que a acompanha em “Pega em Mim” – a mais bela e translúcida das canções -, exalando os perfumes do que são os seus próprios registos autorais, construindo hibridismos bem-sucedidos.
Um Vai e Vem que aterra nos corpos celestes que somos, explorando as suas órbitas e avança em diante apenas para dizer nos reconhece. Bem-vindos à era especial de Márcia.
“Vai e Vem”, de Márcia, está disponível em CD e nas plataformas digitais numa edição da Warner ★★★★
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