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Percursos semelhantes que se encontram na música de Arvo Pärt

Texto: NUNO GALOPIM

Um compositor e uma violinista que foram em tempos disssidentes do regime soviético encontram-se agora acompanhados pela Orquestra Sinfónica Nacional da Estónia em volta de peças que ajudaram a definir a visão tão pessoal da música do compositor.

Natural de Paide (na Estónia, depois de 1940 parte da URSS), cresceu sob o regime soviético. As suas primeiras obras, claramente distintas das que dele hoje são apresentadas e gravadas, reflectiam um interesse por compositores como Shostakovich, Prokofiev, Bartók e Shoenberg… Alguns dos trabalhos foram alvo de censura. Esta barreira, que se somou a um descontentamento sobre os caminhos que seguia, levaram Arvo Pärt a um radical repensar de ideias musicais.

Em 1980 deixou a URSS, mudando-se primeiro para a Áustria, mais tarde para Berlim, na Alemanha. Fez longo período de silêncio meditativo, durante o qual estudou o cantochão e as primeiras formas de polifonia. Da reflexão nasceram então novas ideias, entre as quais o estilo habitualmente descrito como “tintinnabuli” ou seja, que traduz sons que sugerem discretos sinos. A sua música passou então a revelar harmonias simples, claramente inspiradas pela memória da música medieval, com o tempo acabando por abordar directamente o canto, no contexto de uma nova música religiosa. Num texto incluído no booklet da gravação de “Alina” pela ECM Records, lia-se: “Compararia a minha música à luz branca, que contém todas as cores. Apenas um prisma pode dividir as cores e fazer com que apareçam; esse prisma pode ser o espírito do ouvinte”. Melhor descrição seria impossível.

Natural da Rússia, onde nasceu em 1959, a violinista Viktoria Mullova também sentiu uma necessidade de “saltar” a fronteira para respirar um ar que não vivesse sob o jugo de uma ditadura. Por ocasião de uma atuação na Finlândia encenou uma diversão ao olhar do oficial da KGB que a acompanhava e, deixando o violino stradivarius (que era posse do Estado) sobre a colcha da cama no seu quarto de hotel, escapou por carro, atravessando a fronteira sueca. Ficou longe das atenções por poucos dias e, já com visto concedido, rumou aos Estados Unidos. Hoje vive em Londres e tem uma carreira que, apesar da clara ligação a diversos repertórios clássicos, conta com episódios de flirt com outras músicas, tendo já gravado abordagens suas à música de Miles Davis, de Youssou N’Dour ou de Alanis Morrisette.

Este disco junta duas figuras que procuraram outras vidas longe de casa. E que agora se encontraram na Estónia onde, sob o olhar do próprio Arvo Pärt e na companhia da Orquestra Sinfónica Nacional da Estónia, dirigida por Paavo Jaarvi (natural de Tallin, mas que se mudou para os EUA em 1980), abordar uma série de peças que correspondem a uma etapa de criação de uma linguagem à qual o compositor chamou “tintinabuli” (que, em traços largos, podemos descrever somo uma ideia que sugere o som distante de discretos sinos que há algum tempo deixaram de tocar mas ainda ecoam a reverberação) e que correspondem também a um espaço de afirmação de uma das faces de uma identidade europeia de uma música (a minimalista) que emergira nos EUA na segunda metade dos anos 60.

Arvo Pärt (n. 1935) é, com razão, muitas vezes citado como um dos principais compositores minimalistas europeus, autor de uma obra que, apesar de algumas afinidades filosóficas com contemporâneos americanos, se revela formalmente distinta logo na década de 70. Há até quem o apresente como o fundador daquilo que foi já designado como minimalismo sagrado, partilhando aí espaço de trabalho com outras figuras como o polaco Henryk Gorecki ou o britânico John Tavener. Obras como “Tabula Rasa”, “Fratres” e “Spiegel Im Spiegel” (que aqui escutamos pelo pianista Liam Dunachie) representaram momentos decisivos na definição de uma linguagem, da qual decorre muita da obra posterior do compositor. Este disco, no qual essas obras têm uma presença central (mas que nelas não se esgota) serve por isso um belo retrato dessa visão.

“Arvo Pärt”, por Mullova, Järvi e a Orquestra Sinfónica Nacional da Estónia, está disponível em CD e nas plataformas digitais numa edição da Onyx Classics.

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