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Afinal o que é uma família?

Texto: NUNO GALOPIM

Continuando a explorar uma questão que abordou já em “Tal Pai tal Filho”, o japonês Hirokazu Koreeda apresenta-nos em “Shoplifters” um pequeno agregado que vive na pobreza durante um tempo de recessão. Roubam para sobreviver. Mas todos eles escondem segredos. Uns partilhados. Outros nem por isso…

A expressão da força de coesão que faz uma família, reflexões sobre a ordem moral das coisas, o questionar da noção do que é ou não o “normal” são características que há muito cruzam o cinema de um dos autores mais brilhantes do atual cinema japonês. E já quase quinze anos passados sobre “Ninguém Sabe”, o filme com o qual as nossas salas de cinema o descobriram, o novo “Shoplifters” mostra como há ainda em si uma respiração autoral pungente capaz de configurar uma vez mais todo um quadro de temas e coordenadas habituais numa narrativa tão surpreendente, ao mesmo tempo profundamente humana e decididamente também violenta, que acabou por arrematar em Cannes a primeira Palma de Ouro para o cinema japonês desde “A Enguia” de Imamura (em 1997).

Ao invés do que sucedeu, por exemplo, em “Ninguém Sabe” (onde partiu de um episódio real para nos dar a ver a história dramática de quatro pequenos irmãos abandonados por uma mãe mas que decidem manter o quotidiano o mais “normal” possível face ao olhar dos outros), desta vez não houve um facto como gatilho para chegar à narrativa. Mas antes um momento na história social japonesa recente. Uma recessão. Recessão que tornou mais frágeis os empregos e assistiu a um incremento do pequeno furto pela sobrevivência…

E é aí que partimos. Numa família na qual começamos por conhecer um pai que domina a arte do roubo em toda a loja, auxiliado por um pequeno filho que com ele tem um código de ações e sinais que fazem a coisa ser praticamente infalível… Esqueceram-se do champôo… Rouba-se amanhã, pois está claro… Roubos com uma ética associada, já que o pai um dia terá dito ao filho que o que está nas lojas ainda não é de ninguém… (não é bem assim, sabemos, mas para o mais pequeno fez sentido).

Há uma mãe que trabalha numa lavandaria e leva ao seu bolso o que eventualmente encontra no bolso da roupa dos outros que tem de lavar e passar a ferro. Há uma irmã mais velha que trabalha num peep show, em modo… suave. E uma avó, a matriarca, que parece ser maior força agregadora e que, como é habitual no cinema de Koreeda, toma o momento das refeições como o espaço de convergência da família, das histórias do dia que têm para contar e das preocupações que carregam… É esta a família que começamos por ver. Uma família, pensamos, aplicando o quadro normativo a que a sociedade e a ordem moral nos habituam.

Uma menina, deixada ao frio numa varanda, cruza-se com um dos trajetos de regresso a casa do pai e filho. Levam-na com eles para lhe servir um jantar… Mas notam que tem no corpo marcas de maus tratos… E acabam por deixá-la ir ficando… Mais um roubo?

A casa caótica onde vivem, que tirita de frio no Inverno, abre as portadas para um micro-jardim quando chega o verão. Se o sol aqueceu o ambiente, a nossa convivência com o quotidiano da família já passou também a fase de quebrar o gelo… Mas se ao mesmo tempo se gerou empatia com todos eles, e verificou como são afinal uma família mais de afetos do que de sangue (chegando mesmo a falar sobre se podemos ou não, afinal, escolher quem é a nossa família), na verdade todos guardam segredos maiores, alguns mesmo uns dos outros. Da aparente avó compreendemos que é alguém que prefere viver com esta família à sua volta reunida em vez de caminhar solitária para a morte. Dos outros maiores revelações se aguardam…

A descoberta das verdades revela o que de bizarro havia afinal escondido em toda a construção do pequeno agregado. E lança questões. E uma delas procura ver até que ponto resistem os afetos à verdade e à identidade “sanguínea” da noção normativa de família. Torna-se evidente que, depois do pungente “Tal Pai Tal Filho” – a história de dois meninos trocados à nascença que só seis anos depois é notada, com a consequente “devolução” aos pais naturais, rompendo assim as famílias de afeto entretanto criadas – Koreeda continua interessado em explorar a natureza desta força agregadora que é a família. Terá obtido aqui respostas definitivas? Sob o risco de “estragar” o fim do filme a quem o for ver, é coisa que aqui deixo em aberto… Mas fica a certeza de que, a somar ao brilhante “Loveless” de Zviagintsev, temos em “Shoplifters” um dos filmes do ano.

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