A noite em que David Bowie ajustou contas com Glastonbury
Texto: NUNO GALOPIM
Têm sido incrivelmente cheios de edições e (boas) surpresas estes primeiros anos depois da morte de David Bowie. As caixas antológicas (já vão em quatro e com o período 1969-1988 devidamente explorado) revelaram várias gravações ao vivo inéditas mas também um álbum perdido (“The Glouster” que acabou por dar lugar a “Young Americans”) ou uma abordagem alternativa a um disco que nunca deixara ninguém plenamente satisfeito (“Never Let Me Down”). Ao mesmo tempo, e para assinalar edições do Record Store Day, têm surgido outras peças de arquivo (desde mais discos ao vivo à maquete original de “Let’s Dance” ou ao álbum promocional “Bowie Now”)… E certamente não faltam ainda em arquivo muitas outras gravações, que tanto poderão ir de uma eventual vida oficial para o álbum “Toy” (o sucessor de “hours” que nunca chegou a sair do estúdio) aos muitos registos para rádio e televisão que foram gravados desde os anos 60 e que ou são conhecidos e até chegaram a ter pontual difusão (como o mítico “1980 Floor Show” gravado em Londres em 1974 e que a NBC passou uma vez) até registos que, apesar de captados, ficaram depois na gaveta… “Glastonbury 2000” está um pouco entre estes dois casos. Filmado pela BBC, o concerto que assinalou no ano 2000 o regresso de David Bowie ao Festival de Glastonbury (ao qual não ia desde 1971) teve breve presença no pequeno ecrã num programa especial no qual apenas sete canções foram apresentadas. O restante (e vasto) alinhamento ficou em arquivo. Até agora…
A edição de “Glastonbury 2000” – que tanto se faz em suporte de áudio como em vídeo – mostra o concerto que na altura gerou aplauso generalizado e que representa um episódio de celebração de carreira, escapando por isso à mais habitual lógica de digressões que partem de um disco recente para definir a identidade sonora e visual do que se leva ao palco. O alinhamento, de 21 canções, visita várias etapas e álbuns da sua obra, os mais antigos sendo “The Man Who Sold The World” de 1970, o mais recente, “Earthling”, de 1997. Curiosamente o disco mais visitado pelo alinhamento foi “Station To Station”, de 1976.
O concerto é centrado nas canções. E que lote de canções! Bowie convocou a Glastonbury uma banda pequena, mas eficaz, que acolheu o regresso de Earl Slick e firmou a presença marcante da baixista GailAnn Dorsey (a quem foi lançado o desfio de fazer a parte vocal de Freddie Mercury em “Under Pressure”). Houve pequenos concertos de “aquecimento” em Nova Iorque, um deles para subscritores da BowieNet. Mas só em Glastonbury o alinhamento cresceu para mostrar aquele olhar retrospetivo alargado que fez deste um dos mais marcantes momentos de palco da etapa tardia da carreira de Bowie.
No plano do vídeo a realização está longe de representar o que de melhor já se viu em momentos captados em palco. Mas o calibre das canções, a capacidade de vestir várias fases num mesmo alinhamento, a presença informal de Bowie, as pequenas histórias que nos conta entre canções, são o verdadeiro sabor de uma memória que felizmente vence as fronteiras do arquivo onde ficara encerrada nos últimos 18 anos. E não tenhamos dúvidas de que outras igualmente saborosas estarão ainda por ali à espera da sua vez para entrar em cena.
“Glastonbury 2000”, de David Bowie, está disponível em formatos de 3 LP, 2 CD + DVD ou nas plataformas digitais numa edição da Warner Music.
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