As caixas que contam toda a história de Kate Bush… Parte 1
Texto: NUNO GALOPIM
Começou nova, muito nova. Tinha apenas 19 anos quando o seu single de estreia chegou aos escaparates das novidades, trepando em pouco tempo ao primeiro lugar da tabela de vendas do Reino Unido, dela fazendo mesmo a primeira mulher a levar uma canção de sua autoria a semelhante posição de destaque. A sua obra fez-se, desde cedo, segundo caminhos que vincam a demarcação de uma personalidade forte. De resto, desde meados dos anos 80, sempre que entra em cena uma nova voz feminina, autora, dotada de um claro sentido de expressão de um “eu” que não se verga a “outros”, Kate Bush surge inevitavelmente apontada como eventual modelo de referência.
Filha de um médico inglês que gostava de tocar piano e de uma mãe irlandesa que tinha sido dançarina em grupos folk, Kate cresceu numa quinta para os lados de Kent (Reino Unido). Um dos seus irmãos construía instrumentos, o outro era fotógrafo e escrevia poesia, ambos com um relacionamento claro com a cena folk local. Kate também começou a dar bem cedo o ar da sua graça.
Começou a tocar piano, depois o violino. E tocava num órgão que para ali estava num celeiro, nas traseiras da casa dos seus pais. Começou a escrever canções bem cedo (alguns temas do primeiro álbum surgiram em primeiras versões quando tinha apenas 13 anos). E tantas canções fez que, a dada altura, os pais gravam uma mão cheia delas (cerca de 50, segundo se conta) para as mostrar em editoras. Uma dessas fitas com gravações caseiras chegou, através de um amigo de família, às mãos de David Gilmour, dos Pink Floyd. E é ele quem a chama a um estúdio profissional para, acompanhado por técnicos (entre os quais se contava Andrew Powell, que acabaria por produzir os seus dois primeiros álbuns), registar uma maquete capaz de dar mais clara conta das suas capacidades. É essa a gravação que aterra na secretaria de um executivo da EMI que assina um contrato Kate Bush por volta de 1975. Entre a escola e o estúdio Kate começou então a trabalhar em canções para um disco que, na verdade, só ganharia forma em sessões com carácter mais regular no Verão de 1977. Houve quem chegasse a comentar que o silêncio de dois anos a que a sua música foi forçado se deveu mais a uma vontade da editora em não deixar mais nenhuma outra a assinar, ciente contudo de que não chegara ainda o momento para a apresentar em disco.
O momento chega em inícios de 1978. Firme nas suas ideias e decidida a gerir o rumo dos acontecimentos da sua carreira, travou a vontade da editora em fazer de “James and the Cold Gun” o single de apresentação do álbum “The Kick Inside”, insistindo antes em “Wuthering Heights”, que acompanhou com um teledisco no qual se mostra em canário de fundo negro e imagem algo enevoada, dançando (com gestos que houve já quem associasse ao karaté que em tempos praticara). O sucesso monumental do álbum, que caminhava num espaço para lá das fronteiras habituais da canção pop/rock (frequentes foram as vezes em que foi usada a designação ‘art rock’), juntando elementos jazzísticos, explorando o piano e arranjos orquestrais, levou a editora a pedir um sucessor para quanto antes, surgindo assim, e ainda em 1978, “Lionheart”, continuação directa do apelo lírico do disco de estreia, gerando singles que não repetiram os mesmos resultados nas vendas, confirmando ao mesmo tempo a sua presença entre os nomes da linha da frente do panorama da canção pop mais desafiante do seu tempo.
Kate Bush saiu então do estúdio e fez-se à estrada em 1979. Afasta-se dos palcos decidida a ter mais um par de discos nas mãos antes de regressar aos concertos, mas a ideia acaba por nunca se concretizar e pelos estúdios (e pontuais participações em concertos especiais) se faz então a sua vida nos anos 80. De resto só regressaria a um palco longos anos mais tarde para uma residência numa única sala em Londres que faria história.
Abre a década de 80 ao som de “Never For Ever”, o primeiro álbum no qual toma um papel activo na produção, experiência que a leva a alargar os horizontes da sua música para lá dos espaços que havia visitado em “The Kick Inside” e “The Lionheart”. O disco, que tem “Babooshka” como memória mais mediatizada é, na verdade, um espantoso abrir de novas janelas a novas referências: os sintetizadores e as programações rítmicas ganham ali um papel mais central na sua música. Estávamos, afinal, nos oitentas. A experiência de novas ferramentas e ideias aprofunda-se depois em “The Dreaming” (1982), álbum que compõe num teclado de um Fairlight e não ao piano e que revela uma ainda mais profunda relação com as novas formas e ferramentas ao serviço da música nesse tempo.
A década de 80 é tempo de importantes e variadas colaborações para Kate Bush. Em 1979 tinha já escrito e interpretado o tema “The Magician” para o filme “The Magician of Lublin”, de Menahem Golan. Seis anos depois assina uma versão de “Brasil”, de Ary Barroso, que Terry Gilliam usa na banda sonora do seu “Brazil”, usando arranjos (e gravada sob a direcção) de Michael Kamen. Outra experiência para cinema surge em 1986 com “Be Kind To My Mistakes”, tema que escreve para “Castaway”, de Nicholas Roeg.
As suas parcerias não se esgotam contudo nos espaços do cinema. Em 1979 havia colaborado em duas das canções do terceiro álbum a solo de Peter Gabriel. O reencontro faz-se em 1986 ao som de “Don’t Give Up”, dueto que ambos assinam para o álbum “So”, de Gabriel. Entre as várias participações em discos de outros artistas que então assina contam-se ainda o tema-título do álbum “The Seer” dos Big Country ou “Sisters and Brothers”, do álbum “Answers To Nothing”, o segundo a solo de Midge Ure, que recentemente havia abandonado os Ultravox.
Editado em 1985, “Hounds of Love” é um momento decisivo na obra de Kate Bush. Não só porque a devolve a um patamar de sucesso e reconhecimento como não conhecia desde o início da década de 80, como abre caminho a novas demandas, revelando sobretudo uma nova ideia de canção pop de alma mais sofisticada que terá continuidade alguns momentos dos álbuns que apresentaria entre finais de 80 e anos 90. O disco acabaria por se afirmar mesmo como o comercialmente mais bem sucedido dos álbuns de Kate Bush, destronando inclusivamente do topo da tabela de vendas “Like A Virgin”, de Madonna. Para acautelar a derrapagem causada pela elevada conta de estúdio por alturas da gravação de “The Dreaming”, Kate Bush montou um espaço de trabalho seu perto de casa. E assim, com o seu ritmo, deu forma às ideias.
O passo seguinte seria a edição de uma antologia de êxitos, para a qual gravou o inédito “Experiment IV”. E Kate Bush só regressaria aos discos em 1989, ao som de “The Sensual World”, disco que aprofunda o carácter intensamente pessoal da sua escrita. Com uma colecção de canções que abordam essencialmente as temáticas do amor Kate Bush alcança aqui o maior dos seus êxitos nos EUA (onde “The Sensual World” se afirma como o seu disco com maiores vendas de sempre, ultrapassando a fasquia do meio milhão de unidades). Um ano depois junta toda a sua obra numa caixa à qual dá o nome de uma das canções do álbum de 1989 (“This Woman’s Work”) e edita em single uma versão de “Rocket Man”, de Elton John. Quatro anos depois edita o seu sétimo álbum de originais, “The Red Shoes”, onde acolhe uma multidão colaboradores entre os quais contamos os nomes de Eric Clapton, Gary Brooker (dos Procol Harum) ou o maestro e compositor Michael Kamen.
O arco de tempo definido por este conjunto de álbuns representa o conjunto de memórias (com som remasterizado) que agora estão reunidas em “Kate Bush Remastered – Part 1”, a primeira das duas caixas antológicas recentemente editadas. Isto na versão em CD. A edição em vinil espalha os álbuns em quatro caixas.
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