Onde começa a história de um corpo?
Texto: GONÇALO COTA
“Girl”, primeira longa-metragem do belga Lukas Dhont, conversa sobre a plasticidade dos corpos. Mas também sobre a sua tenacidade: Lara, 15 anos, tem o luminoso sonho de se tornar bailarina. Na primeira aula – depois de ter chegado recentemente a uma nova cidade e ter sido aceite num dos mais importantes conservatórios de dança do país – pedem-lhe para fechar os olhos. O professor não lhe aponta um revolver, mas é como se ardesse na mesma intensidade. “Há alguma menina na sala que tenha problemas em tomar banho com Lara?”. Antes de ter adotado nome e formas femininas, Lara nasceu no corpo de um menino. Temos, aqui, uma visão rara e completa sobre a transsexualidade: o modo como contemplamos este jovem corpo em transição (aos quais as constantes aulas de ballet acrescentam feridas) e toda uma identidade, uma existência que ousam em permanecer vivas num quadro social complexo (ainda que Lara tenha o pleno apoio do pai), é vertiginoso e lúcido.
Mas é no silêncio, no quarto a meia luz,que Lara (magnificamente interpretada pelo jovem ator Victor Polster) ludibria o próprio corpo para ouvir o rumor de um corpo que estará para florescer. O lentíssimo florescer. Um florescer doloroso, que passa por complexas intervenções cirúrgicas, comprimidos e hormonas. E por um pensamento incendiado e torturado por um corpo que ainda não é o seu – o epicentro emocional deste “Girl”. O corpo de Lara começou quando, em si, pressentiu outro corpo prisioneiro. Que vestígios permanecerão dessa reclusão? Um filme formidável.
Deixe uma Resposta