Os melhores discos de 2018, por Nuno Galopim
Texto: NUNO GALOPIM
Descentralizar, alargar horizontes, experimentar, misturar, olhar para lá dos cânones… São algumas das características que passam por muitos dos discos que mais gostei de ouvir ao longo deste ano. A transgressão do ‘flamenco’ que explora uma pulsão rítmica que está na sua alma mas que agora cruza tempos e escuta ecos de um presente eletrónico teve em Rosalía uma figura que, brevemente (não duvidemos) estará a dar um salto para um patamar de visibilidade maior… De um álbum (aparentemente) menor de Bowie em finais de 80 nasceu, pelo trabalho de regravação que seguiu pistas por si desejadas – e até aqui não concretizadas – um dos seus melhores legados das colheitas de 80. No plano nacional há um olhar sobre os significados de Lisboa no século XXI traduzidos num alinhamento de canções que, como poucas, nos dizem quem somos, onde estamos, com quem estamos. Luísa Sobral criou o seu melhor álbum até aqui. José Mário Branco mergulhou (e ainda bem que o fez) nos arquivos e Sérgio Godinho deu-nos o seu melhor conjunto de novas canções desde o magistral “Domingo No Mundo”, de 1997. No plano das reedições há que ressalvar dois casos. E curiosamente ambos made in Portugal. Por um lado a confirmação da excelência das reedições da Armoniz, que têm elevado a um patamar de cuidado (técnico, artístico e editorial) a devolução ao presente de grandes memórias da música feita entre nós. Este ano chegou-nos o maravilhoso “Blackground” do Duo Ouro Negro. E venham mais discos! Também reeditado o histórico “Belzebu” não só fez recordar como eram desafiantes e cativantes as aventuras exploratórias dos Telectu como o lançamento do disco deu mote a uma reativação em palco do projeto (mais discos e concertos poderão vir a caminho, assim esperamos). Nos espaços da música contemporânea, do jazz (e clássica e exploratória e o que mais ficar de fora do universo popular) há um álbum que se destacou: o novo de Jon Hassell… Mas a continuação das explorações de Gäs ou as experiências eletroacústicas de Robert Morris, juntamente com (finalmente) a gravação de “Doctor Atomic” de John Adams são momentos a fixar entre as muitas memórias de ouvir que 2018 nos deu a escutar.
INTERNACIONAL
“El Mal Querer”, que propõe uma experiência concetual (cada canção corresponde a um episódio de uma narrativa ordenada), revela uma visão atual e desafiante sobre o flamenco. E tanto mantém marcas da sua genética tradicional – sobretudo no canto, na guitarra e do desenhar da estrutura rítmica pelas palmas – como junta modos de compor, de usar eletrónicas (como recurso instrumental ou de manipulação) ou até mesmo a presença pontual de uma orquestra para procurar os diálogos entre tradição e modernidade, entre o flamenco e a canção pop dos quais emerge um álbum que dificilmente escapará às listas dos melhores do ano. É um disco intenso, capaz de convocar toda a carga emotiva que habita o flamenco para a projetar num espaço que, sem apagar essas marcas de origem, as projeta entre sonoridades e formas que estão na linha da frente da música do nosso tempo.
1 Rosalia “El Mal Querer”
2 David Bowie “Never Let Me Down 2018”
3 Everything is Recorded “Everything Is Recorded by Richard Russell”
4 Neneh Cherry “Broken Politics”
5 Sevdaliza “The Calling”
6 Tuung “Songs You Make at Night”
7 Mathew Dear “Bunny”
8 Oneothrix Point Never “Age Of”
9 Low “Double Negative”
10 David Byrne “American Utopia”
NACIONAL
“Mundu Nôbo” é um impressionante espaço de revelações já que, de pistas com ecos de memória acabam sempre por emergir sensações do presente, moldadas por um processo que optou por subtrair até achar a essências das coisas e, depois, para elas olhar sob um ponto de vista sem barreiras, sem fronteiras. Um ponto de vista de hoje. Resta acrescentar que ao magnífico lote de composições, aos sabores e experiências aqui convocados, à voz segura e emotiva de Dino d’Santiago e ao labor eletrónico de primeira água se junta um trabalho de produção que, pelas qualidades do som, permite arrumar todas estas ideias com clareza, pujança e solidez. De resto, e tal como o recente disco de Rosalía mostrou, esta característica – a qualidade da produção – é um fator essencial a dominar a bem das possibilidades de escuta mais além de acontecimentos nascidos num mundo periférico aos epicentros da agitação discográfica. Lisboa está na periferia, não é uma capital mundial do disco. Mas “Mundu Nôbo” pode levar uma das suas grandes vozes atuais mais além.
1 Dino d’Santiago “Mundu Nôbo”
2 Luísa Sobral “Rosa”
3 José Mário Branco “Inéditos (1967-1999)”
4 Sérgio Godinho “Nação Valente”
5 Vítor Rua & The Metaphisical Angels “When Better Isn’t Quite Goos Enough”
6 Selma Uamusse “Mati”
7 Márcia “Vai e Vem”
8 Aline Frazão “Dentro da Chuva”
9 Sequin “Born Backwards”
10 Filipe Sambado “Filipe Sambado & os Acompanhantes de Luxo”
REEDIÇÕES
A Armoniz Records já tinha chamado merecidas atenções por ocasião da reedição (em vinil) do primeiro LP do Quarteto 1111 e pelo álbum de estreia a solo de José Cid. Em 2018 juntou ao seu catálogo o histórico “Blackground” do Duo Ouro Negro. A reedição manteve firme o objetivo da editora em devolver ao presente os discos no seu formato original. O critério editorial, como afirmou o responsável da editora, é o de escolher discos “raros e de qualidade”, que assim viajam no tempo até aos nossos dias em novas prensagens em vinil com corte feito a partir dos masters originais. Esta opção, de resto, reflete outro dos paradigmas da identidade das reedições da Armoniz. Cada disco procura recuperar também as suas capas no grafismo original – o que neste caso uma vez mais aconteceu, apresentando-se o LP com capa ‘gatefold’ respeitando o trabalho de Eleutério Sanches, o autor da pintura que ali podemos ver. Cada reedição é acompanhada ainda por um conjunto de textos que nos ajudam a entender o disco no quadro da obra dos artistas, no seu tempo e nos universos musicais convocados. Neste caso o texto foi do próprio Miguel Augusto Silva, focando não apenas o processo de progressiva tomada de consciência do Duo Ouro Negro das músicas traicionais e das várias línguas de Angola mas também do conjunto de instrumentos usados na criação do disco. A reedição é limitada a 500 cópias numeradas.
1 Duo Ouro Negro “Blackground”
2 Telectu “Belzebu”
3 David Bowie “Loving The Alien (1983-1988)”
4 Beatles “White Album (Box Set)”
5 Soft Cell “Key Chains and Snowstorms”
6 Kate Bush “Remastered” I + II
7 Depeche Mode “12” Singles Collection” (volumes 1 a 4)
8 David Sylvian + Holger Czukay “Plight + Premonition & Flux + Mutability”
9 Rolling Stones “Beggar’s Banquet (50th Anniversary Edition)”
10 Japan “Gentleman Take Polaroids” + “Tin Drum” (Half Speed Remasters)
CLÁSSICA, JAZZ, EXPLORATÓRIA (e por aí…)
Aos 81 anos Jon Hassell lançou um álbum que, tudo indica, inicia uma série na qual nos lança um novo desafio: o da audição da música alternativa ao alinhamento cronológico com que escutamos um disco (ou gravação) do princípio ao fim, nesse sentido… Pois o seu desafio é o da escuta… vertical! E o que é a escuta vertical? Explicado de uma maneira simples trata-se de uma sugestão de progressivo mergulho entre as camadas de acontecimentos que a mistura final da gravação sobrepôs. Com um ensemble que junta guitarristas, baixistas, bateristas e violinistas, todos eles (e tal como o próprio Hassell) artilhados de eletrónicas, “Listening To Pictures” é um disco que ao mesmo tempo serve uma síntese de algumas das linhas exploratórias da obra do compositor e trompetista – sobretudo o seu interesse pelas texturas ambientais, o jazz, ecos do mundo e a cor muito peculiar da sua relação com o trompete – e nos conduz a um desafio de, pela habituação, ir encontrando ideias, formas e pistas entre as camadas de som destas composições.
1 Jon Hassell “Listening To Pictures”
2 Gäs “Rausch”
3 John Adams “Doctor Atomic”
4 Robert Morris “Riplling”
5 John Coltrane “Both Directions at Once – The Lost Album”
6 Mullova / Järvi “Arvo Pärt”
7 Steve Reich “Pulse / Quartet”
8 John Surman “Invisible Threads”
9 Florian Webber “Lucent Waters”
10 David Lang “Writing On Water”
divergimos, abraço!
LPA
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