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As novas trovas de um homem feliz

Texto: NUNO GALOPIM

Sinais de luminosidade e de vitória da felicidade sobre a depressão habitam o quarto álbum de James Blake no qual a melancolia natural da sua voz e um gosto pelas máquinas e por ecos classicistas não estão de todo perdidos. Rosalía, André 3000 e Moses Sumney são convidados num álbum que abre mesmo bem a colheita de 2019.

Com raízes no dubstep, mas juntando desde cedo as experiências de quem viveu as etapas de um ensino “clássico” numa escola de música, James Blake ensaiou nos seus primeiros máxis e EPs (sobretudo em “CMYK” e “Klaviewerke”, ambos de 2010) uma série de caminhos e ferramentas que, juntamente com o seu álbum de estreia “James Blake” (de 2011) ajudaram a criar as bases de uma ideia do que seria a música da primeira etapa do século XXI. E era então curioso (leia-se interessante) verificar que, somando este disco ao ainda recente “The Age of Adz”, de Sufjan Stevens, duas das mais aclamadas edições discográficas daquela altura resultavam de um reencontro de figuras nos universos da música (a que chamamos) popular com uma pulsão mais experimentalista. O percurso seguinte de James Blake foi-se contudo afastando dos terrenos de uma experimentação mais ousada, dedicando os dois álbuns seguintes a arrumar as ideias, em “Overgrown” (2013) sugerindo ainda uma continuação direta das pistas antes lançadas, em “The Colour In Anything” (2016) fechando mais os horizontes da sua música num terreno frágil, sombrio, mais feito de lágrimas e nuvens do que de ânimo e esperança… Pelo caminho gravou num dos seus EP uma versão de “A Case of You” de Joni Mitchell – confirmando uma linhagem cantautoral na sua genética – e voltou a abrir frestas de ensaio e procura numa série de EP, máxis e colaborações que foi desenvolvendo no aparente hiato dos últimos três anos. E se “Vincent” (2017) parecia sugerir que o futuro poderia encontra-lo em regime de voz e piano, logo “If The Car Beside You Moves Ahead” (2018) devolvia à música uma angulosidade e apelo cinematográfico ao jeito dos dias de “Wilhelm Scream” ou “Lindisfarne”… Ainda em 2018 uma luminosidade diferente emergiria num outro single: “Don´t Miss It”, canção que parecia conciliar o velho diálogo entre máquinas e heranças classistas dos dois primeiros álbuns e a invariável melancolia da voz de James Blake com um melodismo leve e luminoso… Estaria a vida em Los Angeles (mais soalheira do que as ilhas britânicas onde nascera e começara a fazer música) a contaminar a sua música. Estaria a aparente felicidade pessoal a mudar o curso das suas canções. Se olharmos para o alinhamento do novo álbum e, destes singles, notarmos que o que ali encontramos é este belíssimo “Don’t Miss It”, então estas coordenadas que acabo de lançar podem fazer sentido para explicar a nova música que encontramos no álbum que assinala o regresso aos seus melhores dias de James Blake. Um álbum de um homem feliz, mas que não deixou de ser quem era.

Uma das mais distintivas entre as características de “Assume Form” face aos discos anteriores de James Blake é a profissão de colaborações que abrem o leque das possibilidades tímbricas, emocionais e plásticas das canções. É verdade que foi sobretudo em discos de outros que mais vezes James Blake conjugou o verbo “colaborar”. Mas já em álbuns anteriores seus tinha chamado convidados aos microfones: RZA em “Overgrown”, Bom Iver no terceiro álbum. Mas nunca um coro tão expressivo (e diverso) havia colaborado com James Blake num mesmo alinhamento. Travis Scott, Andre 3000, Moses Sumney e Rosalía (que cada vez mais parece ser “figura do momento”) amplificam a paleta estados de alma num álbum que canta um estado de felicidade (bem distinto do que dominava os tons mais sombrios de discos anteriores) que claramente transparece de fio a pavio. A estas vozes, mais a de James Blake, claro, o álbum juntou ainda parcerias importantes também na construção do seu corpo instrumental, surgindo aí nomes como o produtor e DJ Metro Boonmin, Oneohtrix Point Never ou Dominic Maker (do duo Mount Kimble, com quem James Blake já colaborou).

Se o tom debussyano do tema-título, que abre o alinhamento, frisa marcas de identidade logo num primeiro contacto com o álbum cabem contudo a canções em dueto com vozes convidadas o vincar de que algo diferente aqui acontece. “Tell Them”, com Moses Sumney é uma quente e sorridente pérola pop. “Where’s The Catch”, com Andre 3000, assimila e cruza pistas hip hop que ajudam a alargar o espetro de possibilidades futuras para a música do próprio James Blake. E “Barefoot in The Park”, com Rosalía cruza rotas e destinos com os caminhos de “El Mal Querer” e sublinha que vivemos um tempo de abertura à presença de outras línguas para lá do inglês que o boom da cultura rock’n’roll inscreveu no mapa mundo da música com um protagonismo que já tem mais de meio século de vida. Mas não fiquemos com a ideia que é apenas em momentos de colaboração que o álbum brilha. Escutem-se o já referido “Don’t Miss It”, a belíssima balada orquestral “I’ll Come Too” e a trova de vitória sobre a depressão que escutamos em “Power On” para reconhecer que as vitaminas de boa agitação, bem estar e fulgor reencontrado contaminaram profundamente James Blake.

Talvez não vá ter “Assume Form” o impacte de um álbum como o que, em 2011, James Blake apresentou como um dos líderes de uma nova mensagem que então começava a ganhar visibilidade. Mas este é um disco para juntar a esse “James Blake” se nos pedirem um par de rodelas em vinil que nos ajudem não só a mostrar o melhor do músico mas a dar conta de caminhos novos (e já com expressão global e descendência, portanto, culturalmente consequentes no seu tempo de vida) que a canção popular tomou na segunda década do século XXI.

“Assume Form”, de James Blake, está disponível em CD e nas plataformas digitais numa edição da Polydor / Universal ★★★★★

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