Entre os ecos do silêncio, segundo Eleni Karaindrou
Texto: NUNO GALOPIM
Nasceu em 1941 em Teichio, uma aldeia nas montanhas, a 700 metros de altitude, uma pequena povoação na Grécia central, a cerca de 80 quilómetros de Delfos. Confessa que tem muita nostalgia dessa vida de liberdade total, de um silêncio extraordinário. Além dos sons das florestas que rodeavam a aldeia, era da voz humana que chegavam as suas primeiras experiências com a música. A música era a do canto. Fosse por quem nos campos trabalhava ou em ocasiões de festa, aqui juntando o som do clarinete popular. Da igreja, por sua vez, chegavam ecos de outras músicas. Foram estas as suas primeiras experiências de descoberta nos seus primeiros sete anos de vida. Não havia eletricidade nem rádio nem cinema por perto… Mesmo assim o que mais escutava então era a sobretudo “ a música do vento na floresta”, como ela mesmo descreveu numa conversa que tivemos há uns anos e que na altura publiquei no DN. Se hoje caminharmos entre os discos de Eleni Karaindrou, notamos que um sentido de espaço livre e aberto e essas memórias das periferias do silêncio são experiências que ela nunca mais esqueceu. E antes de aqui espreitarmos o novo álbum, recordemos as palavras que então trocámos.
A descoberta do cinema
A mudança para Atenas, aos sete anos, alargou consideravelmente a sua exposição ao mundo dos sons. O seu pai era professor de Matemática no liceu e, nesses dias, a família habitava um espaço na cave da escola onde ele ensinava. Em frente havia um cinema ao ar livre. “Há muitos na Grécia”, comenta, recordando como ali podia ver os filmes e, depois, “olhando para cima, ver as estrelas”. Para a jovem acabada de chegar da montanha “aquilo era muito bizarro, algo que não compreendia”. Na aldeia “só havia candeeiros a petróleo”. E as memórias do primeiro carro que viu datam do momento em que dali saíra: “Era um camião que fazia grrrrrr e pareceu-me um monstro”, descreve. Na cidade via agora os filmes, “fossem ou não para crianças”. E quando ia dormir “escutava a música dos filmes” que passavam numa sessão mais tardia. Mal imaginando certamente que um dia estaria também ela do outro lado do ecrã.
Outra importante influência formadora foi um piano que descobriu na escola. “No verão, quando não havia aulas, subia as escadas, entrava nas salas e numa delas estava um piano” pelo qual diz que se apaixonou. “Comecei a tocar… Era algo magnífico e o meu pai pôs-me a estudar música numa senhora que ensinava o piano”, recorda. Começou assim a estudar música aos sete anos e nesse período os seus amores “eram também a rádio dos vizinhos, onde escutava árias de ópera”. A vizinha “era de uma família russa culta, que tinha saído do país por razões politicas”. Aos dez anos, quando chegou ao Conservatório, tinha já um leque bem mais alargado de referências. E ali estudou durante 17 anos. “Ouvia a música de várias épocas, estudei de Bach a Beethoven, mas ainda sem ter então contacto com o jazz”. Focava então as atenções “apenas na música clássica, estudava e fazia exames”. Tudo isto em simultâneo com os estudos não musicais no liceu e, depois, na universidade, onde aprendeu história e arqueologia: “O meu pai queria que eu tivesse algo sólido”, comenta. Mas essa foi, como ela mesmo hoje reconhece, “uma cultura importante” na sua formação.
A vida e o momento político que a Grécia então vivia (sob uma ditadura) levou-a Paris em 1967. “Passei dificuldades enormes, mas recebi uma bolsa do governo francês e continuei a estudar etnomusicologia, que era uma disciplina que tinha descoberto e me tinha encantado, porque tratava das tradições orais de músicas de todo o mundo, o que me ajudou a compreender o tesouro da música grega”. Em paralelo seguiu por essa mesma altura um sonho antigo ao inscrever-se numa escola para aprender composição e direção de orquestra, opção que lhe preparava outros horizontes no sentido do que realmente queria fazer: a composição. “A principio, na Grécia, como não sabia nada de orquestração, compunha para o piano. Em Paris comecei a compor peças mais elaboradas. O meu professor disse-me que o compositor nasce e não se forma. E isso marcou-me. Eu já tinha começado a compor como sentia… Tinha um sentido de liberdade. Toda a vida o senti. Não são as leis que formam o compositor, mas a imaginação”, justifica.
Os sons da nostalgia
Vivendo e trabalhando em Paris, ao estudar etnomusicologia encontrou novos pontos de vista sobre a música grega. E dessas novas abordagens à distância nasce o que admite ser um “sentido de nostalgia”. Encontrou “tesouros”, descobriu “a música não escrita, a de tradição oral”, que representa “perto de 80 por cento da música global”. Preparou mesmo um doutoramento que, todavia, nunca terminou, mas desse tempo colheu “muitos motivos” para a sua própria composição. Por essa altura uma professora ouviu algumas das suas composições e incentivou-a a seguir esse caminho. Tanto que, quando “a ditadura caiu na Grécia”, Eleni deixou “cair” o seu doutoramento e regressou ao país com o seu primeiro disco para a cantora Maria Farandouri, uma amiga dos dias de infância.
Recebeu por esses dias as primeiras propostas para trabalhar no teatro e no cinema.
Estávamos em 1975. E aí começou o que descreve como uma “fantástica aventura” que desses espaços essencialmente feitos de imagens, palavras e experiências dramáticas, fez emergir uma voz autoral. “Desde então não compus muitas canções, talvez apenas umas 20, mas para teatro ou cinema”, conta a compositora, acrescentando que não quis fazer uma carreira na canção porque esse não era o caminho que lhe “interessava”. Preferia expressar-se “pelos sons da orquestra”.
Eleni Karaindrou faz contudo questão de deixar claro que não tem quaisquer problemas no relacionamento com as palavras e, em particular, a poesia: “Adoro poesia, é um amor na minha vida”, confessa, lembrando que escreveu poemas enquanto jovem e que ainda hoje gosta de ler “poesia grega e de todo o mundo”… Tem “a sua música, tem uma beleza como a das pequenas joias”, descreve. Na juventude, explica, leu os grandes romances, mas a poesia ainda hoje é para si um meio para se “inspirar”. Profissionalmente trabalhou já “a grande poesia grega”. Em concreto com Eurípedes em “As Troianas” e “Medeia”. Mas no fundo o que a encanta aqui enquanto compositora é mais o sentido dramático que as palavras veiculam.
Ao lado de Angelopoulos
Há encontros que mudam uma vida. E se depois do vento na floresta, os cantos de trabalho e da música na igreja o piano na escola e o cinema ao ar livre do outro lado da rua foram presenças marcantes na etapa de formação, o encontro com o cineasta Theo Angelopoulos representou um episódio maior na construção do seu rumo enquanto compositora. “É muito importante ter encontros na vida e esse foi um grande encontro”, admite. De resto, “quando se trabalha 27 ou 28 anos com alguém e se faz tantos filmes em conjunto encontra-se algo mais profundo nas pessoas”. Esse encontro, diz Eleni Karaindrou, ajudou-a a encontrar-se, deu-lhe “respostas a questões profundas” que colocava a si mesma, e sobre a sua existência.
A relação entre ambos remonta a inícios dos anos 80. O realizador grego era então presidente do júri no festival de Tessalónica onde a compositora se apresentou “com o filme poético “Roza”, sobre Rosa Luxemburgo”. A banda sonora era sinfónica. “O Theo gostou e deu-me o prémio da música no festival. Ele conhecia então o meu estilo e eu, pelo meu lado, adorava o seu, os seus filmes, a sua maneira de organizar os planos, a sua poesia”, recorda deixando evidente uma admiração mútua que desde logo floresceu. E quando propôs um trabalho conjunto, Eleni diz que Angelopoulos “sabia instintivamente o que procurava” em si.
Em 1983, quando começaram a trabalhar em “Taxidi sta Kythira”, o primeiro filme que fizeram juntos o realizador contou-lhe a história que queria filmar: “Ele tinha uma voz de contador de histórias e um modo de narrar que nos fazia pensar em imagens maravilhosas”, lembra. Ela regressou a casa e, no dia seguinte, às oito da manhã, sentou-se ao piano e compôs os temas do filme. “E a rodagem nem sequer tinha ainda começado!”, sublinha. Levou-lhe depois uma cassete e explicou que se tinha inspirado no que lhe tinha contado: “Ele pegou na cassete e, no dia seguinte, disse-me que era o que queria.” E para cada filme “daí em diante foi assim que se passou”. Ela “encontrava o tema de antemão, compunha, fazia as orquestrações e muitas vezes ele tinha a música completa antes de filmar”. Muitas vezes, acrescenta, Angelopoulos “fazia a coreografia com a música”. Noutras pedia uma canção ou pedia uma dança. Mas de um modo geral “os temas principais, a alma dos filmes estava quase sempre encontrada antes da rodagem”. Eleni confessa que desenvolveu com o realizador “uma relação magnífica” porque tinham “uma direção estética semelhante”.
Ele, pelo seu lado, também estava feliz com a colaboração. E a dada altura chegou mesmo a admitir à compositora que não imaginava um filme seu sem a sua música: “Era uma relação profunda e com admiração da minha parte e com estima e respeito pelas composições da parte dele”. Juntos trabalharam numa série de filmes, entre os quais “O Passo Suspenso da Cegonha” (1991), “O Olhar de Ulisses” (1995), “A Eternidade e um Dia” (1998) ou “A Poeira do Tempo” (2008).
O teatro e os discos
Apesar do trabalho para cinema ter uma mais extensa expressão na discografia de Eleni Karaindrou, a sua obra para teatro não é menor. Uma das suas mais recente edições representa, de resto, a sua segunda experiência com Eurípedes, depois de umas “Troianas”, que chegara a disco em 2001 como “Trojan Women”. Resultado, tal como As Troianas, de uma encenação de Antonis Antypas (marido da compositora), Medeia cruza ecos de experiências (e sonoridades) remotas com as vozes de instrumentos de sopro e cordas, entre o arcaico e o contemporâneo estabelecendo-se uma vez mais as pontes que são característica marcante na música de Eleni Karaindrou.
Fazer música para teatro “é um pouco diferente, porque é uma criação que se faz aos poucos”, explica a compositora, referindo-se a um trabalho que, para si, parte do texto. “Se é Shakespeare ou Tchekov é preciso ter em conta a época e, no fundo, encontrar a chave para o autor. [ponto dentro]” Mas depois, acrescenta, “é preciso ter também em conta o encenador, porque cada um aborda o texto à sua maneira e tem sensibilidades próprias”. Observa a cenografia, as cores, vai a muitos ensaios, “ao contrário do cinema”. Para si o cinema apela sobretudo “à intuição, imaginação e inteligência do compositor”. Em teatro, por sua vez, “é preciso estar mais atento a todos os elementos e aí a música surge mais tarde”.
“Medeia”, que assinalou em 2014 um reencontro da discografia de Karaindrou com o teatro, surgiu, sem surpresa, no catálogo da ECM, editora à qual está ligada desde finais dos anos 80 e com a qual encontrou um raro patamar de entendimento. “Foi um grande encontro”, caracteriza, sublinhando que tudo na sua vida “aconteceu por si mesmo”. Em 1986 tinha encontrado a ideia musical para o filme “O Melissokomos”, mas não sabia que instrumentos usar. “E aí pensei no som de Jan Garbaerek, que me acompanhava há já três ou quatro anos”, conta. Falava em concreto de “uma cassete que tinha e escutava muito”, com “uma música com algo profundo e também contemporâneo”. Havia um tema no álbum “Places” de que gostava em particular e mostrou-o a Angelopoulos. “Apesar de ser longe lá fui a Oslo, onde Jan escutou o tema e o tocou no seu saxofone”, recorda. E esse foi, confessa, um grande momento na sua vida.
Foi através dele que chegaria depois àquela que era já a editora do saxofonista norueguês, “a sua família”, como ele mesmo o disse à compositora. Manfred Eicher, patrão e alma da editora, é um cinéfilo e, confirma a compositora, “gostava do cinema de Angelopoulos”, pelo que já havia escutado a sua música. Em 1988 Eicher viu o registo em vídeo de um concerto de Eleni Karaindrou em Atenas, onde esta tocou “Landscape in the Mist”, “um adagio”. Foi a gota de água e quis então fazer um disco em conjunto. Em 1989 ele mesmo foi à Grécia, “fez uma seleção de músicas” e assim nasceu “Music for Films”, a sua primeira edição na ECM. “Até aí eu era a produtora dos meus discos, fazia as misturas, tudo… Quando vi o Manfred gostei da sua maneira de trabalhar, o seu gosto, a estética, a paixão com que trabalha.” Juntos já fizeram 14 discos (contando já com o novo álbum agora editado) e hoje a música de Eleni Karaindrou é mesmo uma das referências do catálogo da editora.
Uma das mais aclamadas forças criativas da música grega do nosso tempo, Eleni não saiu do pais apesar do clima de instabilidade que se vive hoje na Grécia. “Nós pagamos pelos disparates dos políticos”, comenta. “Apesar de tudo, da crise, dos problemas das pessoas, que são enormes, penso que há uma chama. Sou criadora e há sempre uma chama de criação”, defende, revelando-se uma otimista, embora preocupada com a expressão presente da extrema-direita nas intenções de voto no seu país (e volto a recordar que esta conversa data de 2014). “Angelopoulos previu tudo isto”, adverte. “Como tantos outros artistas a sua visão tinha algo de profético. E o último filme, que não chegou a terminar, tratava da falibilidade dos políticos, naturalmente na sua linguagem poética. Li o argumento e era muito forte. Falava de gente que fazia tudo em nome do dinheiro.” Eleni diz que “no fim as forças do bem acabarão por vencer”. Se escutarmos a sua música, entre os silêncios, os ventos, a liberdade, esse sentido de esperança é sempre uma força maior que anima até os momentos mais melancólicos que por vezes nos tem mostrado.
O novo disco
Dois anos depois de “David”, uma cantata na qual cruza as marcas de relacionamento com a cultura entre a qual cresceu com ecos da música dos tempos do poema que aqui é cantado, baseada num poema perdido de um autor esquecido do século XVIII, a compositora grega Eleni Karaindrou regressa agora em “Tous Les Oiseaux” aos universos aos quais associou a parte mais significativa da sua obra: o teatro e o cinema. O disco, o 14º que edita pela ECM, junta composições suas para a peça homónima do canadiano, de origem libanesa, Wajid Mouawad e de “A Love Story”, filme do iraniano Payman Maadi.
Musicalmente Eleni Karaindrou está aqui em terreno familiar, apresentando peças de música de câmara na qual escutamos não só a presença de uma orquestra de cordas como uma série de instrumentos habituais na sua obra, alguns deles frisando a genética cultural não apenas da compositora como das temáticas que aborda. A voz que escutamos é a de Savina Yannatou. O maestro que dirige o ensemble é o violinista Argyro Seira. O piano é interpretado pela própria Eleni Karaindrou.
“Tous Les Oiseaux”, de Eleni Karaindrou, está disponível em CD e nas plataformas digitais numa edição da ECM
PS. Este post inclui uma versão adaptada de um texto originalmente publicado no DN em 2014.
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