A força das palavras no regresso dos Specials aos discos
Texto: NUNO GALOPIM
Foram uma das forças maiores de um movimento que, em solo britânico, promoveu uma revitalização do ska na viragem dos anos 70 para os 80 mas que, além da sua dimensão estética e artística, juntou à música um papel político e social que daria um importante contributo para um processo de progressiva mudança de atitudes face a questões de integração e de combate à xenofobia. O processo, como sabemos, está longe de ter atingido os objetivos. E uma série de notícias que nos últimos meses chegaram aos jornais mostraram, de resto, sinais perturbantes de regressão em várias geografias… O mapa político atual foi, de resto, a principal das razões pelas quais, no momento de gravarem um novo disco, os (novos) Specials terem chamado a si uma canção escrita por elementos da banda que, em 1981, acabariam por a deixar, registando o tema em disco através de um novo projeto: os Fun Boy Three. A canção chamava-se “The Lunatics Have Taken Over The Asylum” e, agora, com nova abordagem e título reduzido a “The Lunatics”, eis que surge no álbum que assinala o início de uma nova etapa na vida dos Specials, correspondendo ao regresso a casa de Terry Hall (precisamente um dos três músicos que em 1981 deixaram a banda para formar os Fun Boy Three).
“Encore” é o título de um novo álbum dos Specials. Mas a verdade é que entre “More Specials” de 1980, a fragmentação do grupo em 1981 (da qual nascem os Fun Boy Three e os Special AKA) e este novo disco houve várias experiências em disco e em palco assinadas pelos Specials. O grupo teve uma segunda vida nos anos 90 para acompanhar um regresso aos discos da lenda jamaicana Desmond Deker e, logo em 1996, editou um álbum em nome próprio. Houve mais discos e palcos. Mas o que “Encore” traz de novo, pela primeira vez desde 1980, é a presença de Terry Hall, vocalista que depois de 1980 passou não só pelos Fun Boy Three e, mais tarde, Colourfield, como depois trabalhou quer a solo quer em colaborações. Este é assim o primeiro álbum dos Specials com Hall desde 1980, apresentando na verdade a mais reduzida das formações do grupo, já que com ele estão apenas Lynval Golding e Horace Panter. E só a história das ausências, da disputa dos direitos de utilização do nome da banda, da “autenticidade” das suas encarnações, daria uma novela…
Foquemo-nos no disco. Com uma banda com alguns anos de nova vida na estrada (desde uma digressão que assinalou, em 2009, o trigésimo aniversário do grupo), os Specials que chegam agora a disco são naturais herdeiros do historial que eles mesmos ajudaram a escrever. E musicalmente convenhamos que não há aqui surpresas maiores. A maior riqueza de “Encore” está no tutano das ideias que as palavras libertam, seja quando recontextualizam “Lunatics” ou ouvimos Lynval a cantar “BLM” (iniciais de Black Lives Matter) ou até quando a voz da ativista Saffiyah Khan toma o protagonismo em “10 Commandments”, uma versão de um clássico de Prince Buster no qual trocam literalmente o sentido do discurso, deixando no passado uma letra misógina, trocando-a por uma atitude que reequaciona o papel da mulher na sociedade. No fundo, retoma-se assim o valor ativista e politicamente interventivo da música dos Specials de há 40 anos.
Não há em “Encore” pérolas do calibre das canções que fizeram o período clássico dos Specials (com Terry Hall). Sem surpresas maiores no departamento da composição, o disco ganha mais cativante sentido no modo como mantém viva a alma mais política que fazia dos seus primeiros dois álbuns mais do que apenas dois monumentos de revitalização de uma música com berço na Jamaica.
“Encore”, dos Specials, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais, numa edição da Universal. ★★★
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