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Scott Walker: as assombrações de um homem do século 30

Texto: NUNO GALOPIM

Do ‘teen star’ americano dos anos 50 ao autor de discos que revelaram outras dimensões para a sua voz no final dos anos 60, dos Walker Brothers ao visionário que assinou discos tão cativantes como perturbantes nos últimos 35 anos, Scott Walker parte aos 76 anos e deixa a obra de alguém que procurou sempre olhar para além do seu tempo e do seu espaço.

Quantas “obras” cabem dentro de uma vida? Cada caso é um caso diferente. Mas Scott Walker (que nos deixou ontem, aos 76 anos) desafiou como poucos aquela ideia de que de um artista esperamos que siga este caminho porque antes andou por ali. Começou a carreira como ‘teen idol’ nos anos 50 e cinco décadas mostrava-se como um dos mais respeitados experimentadores para lá das fronteiras dos géneros musicais. Um conjunto cinco álbuns editados entre 1967 e 1970 definiu um dos mais importantes legados. E pelo caminho experimentou ainda duas vidas a bordo dos Wakker Brothers – que nem eram Walker nem irmãos – e ainda como autor de música para cinema. O mundo da música perdeu um nome grande… É que, mesmo habitando muitas vezes nas periferias das atenções, é difícil não nos cruzarmos com algumas canções suas ou as marcas que em outros ele deixou. E entre os que o admiraram e assimilaram estão nomes como os de David Bowie, Thom Yorke (Radiohead), Marc Almond, Julian Cope, Neil Hannon (dos Divine Comedy) ou os Pulp… Foi um dos grandes responsáveis por levar a música de Jaques Brel a quem ouvia preferencialmente canções em língua inglesa. Compôs para a voz de Ute Lemper. Produziu um álbum dos Pulp… E podíamos continuar o rol de figuras e momentos em que a sua música mudou a música dos outros. Mas nada como voltarmos a ele.

Norte-americano, natural do Ohio (nasceu em Hamilton em 1943), Scott editou os seus primeiros discos em finais dos anos 50. Moldado segundo as normas dos primeiros teen idols, estreou-se como Scott Engel (o seu verdadeiro nome é Noel Scott Engel) em 1957 com o single “When is a Boy a Man”. Sem se afastar muito desses terrenos de uma pop ligeira para consumo dos adolescentes da época, continuou a gravar ora a solo ora através de bandas como os Moongoers, The Chosen Few, The Newporters e The Dalton Brothers antes de, em 1964, se juntar a John Maus e Gary Leeds para com eles formar os Walker Brothers que lhe dariam um estatuto de grande popularidade.

A consciência da limitação dos formatos pelos quais se expressava a música dos Walker Brothers e a progressiva formação de um gosto a seguir por caminhos diametralmente opostos – passando por Beethoven pelo jazz, o cinema de Godard ou de Bergman – acabariam por conduzir a uma (primeira) separação do trio, devolvendo Scott Walker a si mesmo. Mas o homem que editaria o seu primeiro álbum a solo em 1967 estava já longe da teen star que somara êxitos com “Pretty Girls Everywhere”, “Make It Easy On Yourself” ou “The Sun Ain’t Gona Shine Anymore” entre 1965 e 66 e, mais ainda, do rapazito que, em nome próprio, dera os primeiros passos nos anos 50. Editado em setembro de 1967, “Scott” mostrava desde logo na foto da capa um rosto que recusava olhar para a câmara, escondendo os olhos com uns óculos escuros. “Há ali uma privacidade a ser defendida”, descreveu Rob Young no booklet da edição de uma caixa que há poucos anos reuniu os álbuns de 1967 a 1970, acrescentando que “coisas da infância estão assim a ser arrumadas”.

E assim era. Um Scott Walker existencialista emergia naquele instante em que o rapaz se afastava e cedia o palco ao homem. As vivências recentes entre concertos de música clássica, uma admiração pelas bandas sonoras assinadas por Michel Legrand e Ennio Morricone e a pop mais sofisticada que chegava de França ajudaram a definir um patamar que definiu o terreno onde emergiram as novas canções. Mas a maior das descobertas que o disco denunciava era a da música de Jacques Brel. O grande cantautor belga – um dos maiores de todos os tempos – tinha abandonado os palcos em 1966, mas foi num musical, com letras traduzidas para a língua inglesa por Mort Schuman, que Scott Walker contactou pela primeira vez com aquele que seria uma das mais marcantes forças na definição da sua personalidade musical desta etapa. A força daquela escrita (das palavras aos temas controversos), o fulgor dos seus arranjos e pujança interpretativa de Brel arrebataram-no. Durante três discos (de “Scott” a “Scott 3”) gravou três versões de Brel, que mais tarde seriam reunidas na compilação “Scott Walker Sings Jacques Brel”, em 1981.



Scott define por esses dias a emergência de um novo modo de entender a forma das canções. Diferente da grandiosidade do som dos Walker Brothers, procuram novos caminhos, alargam os horizontes dos arranjos, explorando as potencialidades dos sons da orquestra. Nascido em contraciclo num verão que assistia ao florescer definitivo do psicadelismo, o disco definiu um modelo que seria retomado, sob ocasionais diferenças, nos discos “Scott 2” e “Scott 3” (o disco que inclui o tema “30 Century Man” que deu o mote para o título deste texto), a grande mudança chegando em “Scott 4”, o primeiro dos seus discos integralmente feito apenas de canções de sua autoria.

“Scott 4” (1969), que edita originalmente como Nigel Scott Engel, representou, contudo, e depois de uma multidão de sucessos, o seu primeiro fracasso comercial. Sem se afastar dos caminhos que percorrera nos três discos anteriores, vincava ali as marcas de uma personalidade definitivamente encontrada num lote de canções curiosamente menos focadas num só caminho (mais que nunca afastado da simplicidade melodista da pop), e muitas vezes mais parecendo nascidas de fragmentos de ideias. O seu futuro começava ali.

Durante a gravação de “Scott 4” o músico teve ao pescoço a chave de uma cela para meditação num mosteiro beneditino na ilha de Wight onde fazia retiros desde 1966. A opção pela utilização do seu nome real, e não da persona musical que tinha criado anos antes, sublinhava essas assombrações de solidão, num mundo povoado por estímulos que chegam então da escrita de Camus ou do cinema de Bergman (em particular o filme “O Sétimo Selo”). O fracasso do disco nas vendas encontrou, contudo, em 1969, um Scott Walker bem distinto daquele que, depois de semelhante desaire “comercial” em 1984 com “Climate of Hunter”, resistiu à frustração da editora e negou as sugestões de possíveis trabalhos de colaboração com nomes como Brian Eno, Daniel Lanois ou David Sylvian. Mas já lá iremos…

Em 1969 surge um outro disco. Curiosamente um dos menos conhecidos da sua carreira. Com o título (bem explicativo) “Scott: Scott Walker Sings Songs from his T.V. Series”, o disco recolhia canções que o músico levou ao programa que então teve na BBC, todas elas em versões regravadas em estúdio (uma vez que não se recuperam aqui as versões interpretadas ao vivo durante os programas). Não havia ali originais seus, apenas uma mão cheia de versões de temas que na sua maioria ou são baladas de imponente alma orquestral ou standards por si recriados, seguindo caminhos não muito distantes dos que ensaiara nos três primeiros discos a solo. Apesar do impacte comercial que o disco teve na época, este álbum pode não ter agradado muito ao cantor. E representa, juntamente com “The Moviegoer” (de 1972) e “Any day Now” (de 1973), um dos três títulos da obra discográfica de Scott Walker que não voltaram a entrar em catálogo. Há mesmo assim excertos do alinhamento disseminados entre algumas antologias mais recentes, o que permite pelo menos um contacto com um disco, literalmente “perdido” para a memória dos colecionadores do vinil de então. Não é uma obra-prima. Está longe de ser um álbum maior na obra de Scott Walker. Mas é um pormenor curioso que é pena estar tão longe de um acesso mais fácil.

Editado em 1970, o álbum “’Til The Band Comes In” não mostrava o mesmo fulgor inquieto do álbum do ano anterior. Revelava-se aí um disco a dois tempos, indiciando a etapa algo consequente que se segue com uma série de álbuns que edita na primeira metade dos setentas e da qual só recupera com a reunião dos Walker Brothers para três novos discos entre 1975 e 1978.

Depois de um silêncio, o regresso, em 1984, com “Climate of Hunter”, mostrava, algo completamente diferente. O desafio voltava a corroer a alma de Scott Walker e nascia um disco que, tal como os de finais de 60, se mostrava bem distante das tendências ao seu redor, mas que ao mesmo tempo traduzia assimilação de sinais dos tempos nos sons, nos instrumentos, na produção. Era, contudo, embora em climas instrumentais diferentes, um álbum de canções ainda entendidas segundo a sua forma mais canónica. A voz apontava, contudo, para outros destinos mais distantes. Sem então o imaginarmos, começa ali a desenhar-se o Scott Walker “tardio”, um visionário que abandona as formas mais clássicas da canção popular para, daí em diante, procurar uma música exploratória, na qual o canto, a composição e arranjos revelam desejos de busca acima das convenções e dos géneros musicais. Aquela ideia das “barreiras” entre formas e géneros teve aqui um espírito demolidor. Não houve muro que lhe resistisse. Porque se limitou a seguir o seu caminho.

É no assombroso e profundo “Tilt” – que pode causar alguma perplexidade num primeiro encontro para quem guarde a imagem do Scott Walker dos álbuns orquestrais de finais dos anos 60 – que emergem sinais claros de uma nova visão que desconstrói ideias e, mais do que dar-nos respostas claras, prefere lançar-nos em caminhos de busca, feitos de sombras, de tensão, como se nos convidasse a entrar, visceralmente, nas entranhas da sua visão artística. A “Tilt” juntou-se, em 1999, a banda sonora de “Pola X” de Léos Carax e a composição de dois temas para um álbum de canções de Ute Lemper (“The Punishing Kiss” onde figurava, ainda autores como Neil Hannon, Nick Cave, Tom Waits, Elvis Costello e Philip Glass).

Foi novamente longa a pausa até que, em 2006, surge um novo disco. “The Drift”, o regresso, partia de “Tilt”, mas mergulhava mais fundo, ostensivamente rumo a um desejo de abstração, mas procurando encontrar um sentido de coesão e mesmo homogeneidade entre as canções, como se de um ciclo se tratasse. No disco Scott Walker liberta-se definitivamente do esqueleto da canção e saboreia uma espécie de deriva surrealista entre elementos de noise industrial, colagens, sugestões de música concreta, passagens orquestrais, atonalidade, art-rock para guitarras, ambientes sombrios. E por cima lança palavras crípticas e ideias apocalípticas numa voz quase operática, profunda. Inclassificável, “The Drift” é expressão artística de um tempo de loucura global, de violência e alienação. Mas representaria pesadelos concretos ou é mera divagação estética? Leram-se então comparações ao Pierrot Lunaire de Scöenberg, referências a Xenakis, a Ligeti… Usemos antes a linguagem sugerida pelo próprio Scott Walker, e entendamos “The Drift” como uma peça que visa a “sedução” pelo incómodo que inicialmente provoca, um pouco como Francis Bacon pode causar pela sua pintura.



Percussões insistentes abrem, depois, o alinhamento de Bish Bosch, que surge seis anos depois de “The Drift”. Esse é um disco onde Scott Walker tanto explora o som de lâminas que se esfregam entre si (em “Tar”) como aprofunda o trabalho com a orquestra. Trabalho que, como ele na altura explicou, é feito em busca de ruídos, texturas e grandes pilares de som, em detrimento da mais frequente procura de arranjos de arrumação elegante. Num texto então lançado no microsite que a 4AD criou para apresentar o álbum, o título era explicado como juntando uma alteração da palavra “bitch” com o apelido do pintor renascentista Hieronymous Bosch. E, como observou Rob Young (editor da The Wire), a música de Scott Walker é de facto feita de pequenos detalhes, ações e formas, tal e qual alguns dos quadros de Bosch.

Desafiando-nos a ouvir assim a sua música com disponibilidade para a ela regressar e aos poucos nela sentir pequenas obsessões e, assim, descobrir portas de entrada, que geram a descoberta e um progressivo entendimento. E as visões e os temas. São coisas do real ou do mundo imaginário? Bom, em “The Night The Conductor Died” evoca-se a execução de Nicolae e Elena Ceausescu em 1989. A morte, a dor, são temas que passam entre composições assinadas por um reconhecido pessimista que vê as suas canções como seres com alma espiritual. E onde o cinismo não tem lugar.

Do trabalho mais recente de Scott Walker conta-se mais um álbum que continuou a exploração das possibilidades que o músico colocou perante a sua música nos últimos anos. “Scoused”, coassinado com a dupla de drone metal Sunn O))) e as bandas sonoras de dois filmes de Bradley Corbet – “A Infância de um Líder” e, mais recentemente, “Vox Lux”…

E agora o silêncio… Que nós trataremos que não se instale. Será de resto difícil. A sua obra e o impacte nos outros continuarão, certamente, a assombrar-nos.

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