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Outros lamentos e dores de alma na voz de Beth Gibbons

Texto: NUNO GALOPIM

A voz dos Portishead respondeu a um desafio. Cantar a “Sinfonia Nº 3” de Górecki?… Teve aulas de canto e agora surge em disco o resultado, numa gravação com a Orquestra da Rádio da Polónia, dirigida por Krzysztof Penderecki.

Tudo começou num desafio entre um soundcheck e um concerto dos Portishead num festival na região de Cracóvia (Polónia)… E se Beth Gibbons experimentasse cantar a parte vocal da “Sinfonia Nº 3” de Górecki?… Era de facto um desafio. E Beth Gibbons resolveu enfrentá-lo, para tal tendo passado por aulas de canto (algumas delas na Polónia, aí tendo em vista um cuidado na pronuncia das palavras a cantar). Seguiram-se ensaios. E um concerto que levantou aplausos e entusiasmos. Tantos que uma noite que poderia ter ficado apenas na memória de quem passou pela plateia, agora ganha forma numa gravação em disco, na qual escutamos a voz de Beth Gibbons, juntamente com a Orquestra da Rádio da Polónia, dirigida por Krzysztof Penderecki, que foi amigo pessoal de Henryk Górecki…

A orquestra segue uma abordagem canónica à partitura. E Beth Gibbons procura, igualmente, seguir caminhos próximos do que Górecki imaginara. O seu canto afasta-se, portanto, do que conhecemos nos discos dos Porstishead ou no álbum criado em parceria com Rustin Man. Mas o timbre, a força emotiva, que conhecemos de clássicos como “Sour Times” ou “Glory Box” não deixam de marcar a personalidade interpretativa da sua voz, sobretudo nos momentos mais tranquilos, sussurrados, em que a amplificação assegura “familiaridade” maior com o seu registo mais frequente. Isto é sobretudo notório no segundo andamento, talvez aquele em que aqui a voz de Beth Gibbons se sinta mais “em casa”.

Não podemos, contudo, comparar esta interpretação com o fulgor da voz (não amplificada) de uma Dawn Upshaw, uma das muitas cantoras que já interpretaram esta mesma obra, neste caso com o valor acrescentado de ter conquistado, através de uma edição da Nonesuch nos anos 90, valores de vendas que habitualmente só estão ao alcance de discos nas esferas da música pop. Este novo disco é, por isso, mais uma curiosidade para os admiradores de Beth Gibbons do que um “caso” de excelência na história das gravações da “Sinfonia Nº 3” de Górecki. Não deixa, contudo, de vincar como outras possibilidades de canto se podem desenhar aqui. E não será igualmente menor o efeito de descoberta que esta gravação possa fazer junto de quem, admirando Beth Gibbons, não conhecesse ainda a obra de Górecki.

O que falha nesta versão. Não muito, até porque a interpretação acaba por não desapontar (sem na verdade deslumbrar). Mas a opção pela a abordagem canónica não só levanta limites interpretativos como abre um mundo de comparações vocais que, neste caso, nem sempre serão as mais vantajosas para Beth Gibbons. Na verdade houve já maior ousadia interpretativa. Veja-se o caso de Colin Stetson, saxofonista com obra a solo e colaborações assinadas com os Arcade Fire, Tom Waits e Animal Collective, que em 2017 apresentou em disco uma abordagem muito pessoal a esta mesma obra. A “Sinfonia Nº 3” encarava, nessa leitura de Colin Stetson, um encontro entre a sua raiz orquestral (clássica) e a presença de elementos que acentuam os tons de desencanto sob sugestões de intensidade quase nas periferias do noise. Isso sem, contudo abdicar da nitidez das formas nem afogar nunca a condução central da evolução da sinfonia, sobretudo através da presença das cordas (Sarah Neufeld é a violinista) e, a dada altura, da voz de Megan Stetson (que, convenhamos, uma vez mais, também não é a de Dawn Upshaw, mas dá conta do recado).

Henryk Góreki (1933-2010) foi um dos vultos maiores da música polaca do século XX. Nos anos 50 e 60 a sua música colocava-o em sintonia com os movimentos de vanguarda, mesmo contra as críticas do regime, que apontava muitas dessas manifestações como sendo “formalistas”. Em meados dos anos 70 os seus interesses tomaram outro rumo, claramente tonal, procurando um lugar de contemplação por vezes com um subtexto ligado a reflexões sobre a condição humana e a fé, refletindo ainda uma curiosidade pelas noções de espaço com afinidade à dos minimalistas (o que o leva muitas vezes a ser associado a espaços semelhantes aos de Arvo Pärt ou John Tavener).

A “Sinfonia Nº 3” surgiu em 1976, num tempo de transição para a tonalidade. Foi composta na sequência de uma série de estímulos, desde o encontro com um conjunto de canções folk do século XIX à descoberta de uma frase inscrita nas paredes de uma antiga cela da Gestapo, no Sul da Polónia, na qual uma rapariga de 18 anos pedia perdão por ali ter chegado e ajuda pelo que iria enfrentar. Como um lamento, a sinfonia é dominada pelas cordas que desenham uma lenta progressão feita de discretos módulos que se repetem. E por uma voz que entoa, além desta súplica registada numa parede em 1944, palavras de uma lamentação medieval e de uma canção folk da Silésia. Mais que uma simples evocação da dor da memória do Holocausto (e Górecki perdeu familiares em Auschwitz e Dachau), a sinfonia traduz sobretudo expressões de perda, de pesar, de mágoa. Uma elegia sem foco concreto, daí talvez a multiplicidade de interpretações que tem gerado. A citação de 1944, contudo, justifica a ligação que muitos encontram entre esta música e a memória desses dias sombrios.

Sem o aplauso dos que viam Górecki a afastar-se dos caminhos das vanguardas, a “Sinfonia Nº3” conheceu opiniões em todos os sentidos. A sua primeira gravação data de 1978, na Polónia. Nos anos 80 começou a ser tocada no ocidente, ganhando enorme exposição pela sua utilização no filme “Police” (1985) de Maurice Pialat. O cinema voltou a escutá-la mais tarde em outros filmes como “Fearless” (1993) de Peter Weir ou “Basquiat” (1996, na foto), de Julian Schabel e, mais recentemente, em “A Árvore da Vida” (2010) de Terrence Malick. Em finais dos anos 90, os Lamb samplaram um excerto de uma gravação da sinfonia para construir Górecki, um dos temas mais aclamados do seu álbum de estreia.

Editado em 1992 pela Nonesuch (com um pormenor de uma foto de 1899 de Gertrude Käsebier na capa), a versão acima citada, com Dawn Upshaw e a London Sinfonietta, chegou ao nº 6 da tabela de vendas geral em Inglaterra. Liderou a tabela de música clássica da Billboard durante 38 semanas. Vendeu mais de um milhão de cópias… Um fenómeno inesperado, talvez, que colocou no firmamento das grandes obras do século XX uma meditação sobre a perda, a morte e a força da relação entre uma mãe e um filho.

“Henryk Górecki: Symphony No. 3 (Symphony Of Sorrowful Songs)”, por Beth Gibbons, com a Orquestra da Rádio da Polónia, dirigida por Krzysztof Penderecki, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Domino Records.

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