Isto é que é um grande concerto de festival!
Texto: NUNO GALOPIM
O desafio tinha sido originalmente lançado com vista a uma participação no cartaz do festival de Coachella de 2017 na condição de ‘headliner’. Apenas duas mulheres o tinham feito antes: Björk (por duas vezes) e Lady Gaga. Beyoncé seria contudo a primeira mulher afro americana a ser cabeça de cartaz num festival que é, cada vez mais, um dos acontecimentos maiores do mapa mundial dos grandes palcos. A gravidez não permitiu que o desafio se concretizasse mas, um ano depois, aquele palco foi mesmo seu. E pelo que vimos e ouvimos, elevou a fasquia do grau de exigência cénica e de complexidade narrativa e musical a que habitualmente os palcos de festivais não podem concorrer. Mais do que isso, “Homecoming” revelou-se não apenas como o momento de uma (re)confirmação em palco do estatuto global que Beyoncé há já algum tempo detém, como mostrou ser um episódio de celebração de identidade e de afirmação cultural. A primeira afro-america a ser ‘headliner’ em Coachella não secundarizou os jogos de mensagens e significados. E fez de “Homecoming” um concerto digno de figurar naquele panteão dos maiores momentos históricos vividos em palco.
“Homecoming”, o álbum, é um completo documento da atuação (juntando ainda dois inéditos), e mostra desde logo a ginástica de construção de um alinhamento que cruza tempos e referências para definir um percurso que não quer ser mero entretenimento. Porque conta uma narrativa. O filme, mesmo não documentando a totalidade do alinhamento apresentado em palco é, contudo, o espaço onde todos os discursos se cruzam para dar voz maior a este momento.
Desde o início Beyoncé imaginou o concerto como um espaço de afirmação (e celebração) de identidade pessoal e cultural. Ser mulher e ser negra foram por isso pilares maiores na construção de uma ideia que fez questão também de ter o ensino como um valor maior a destacar. Daí a associação ao universo das universidades negras, que aqui estão representados tanto através das associações formais à memória das grandes festas com marching bands, como pela incorporação de palavras de intelectuais e ativistas – de Nina Simone a Malcolm X – que assim sustentam o corpo de ideias que assim aqui encontra uma plataforma de comunicação.
O filme junta ainda a esta celebração cultural (e por isso política) uma dimensão pessoal que dá a conhecer o processo individual por que Beyoncé passou no ano que precedeu esta atuação, assim como faz questão de tomar a experiência vivida em palco como um ato coletivo entre os muitos que nela participaram. Também aí, de certa forma, acaba por passar uma ideia de esforço comum, um pouco como se este fosse um desafio a cumprir pelos estudantes e mestres de um campus.
Nada destas linhas cruzadas de ideias e intenções fere ou secundariza os argumentos de apurado show biz que fazem da atuação também um momento único de teatro musical. O alinhamento é seleto, gourmet, com a devida dose de grandes clássicos e a chamada a palco de colaborações familiares, seja através de Jay Z ou Solange ou até mesmo de antigas companheiras nas Destiny’s Child.
Há aqui mais vida, vibração e consequência do que na esmagadora maioria dos concertos com guitarras a jorrar rock’n’roll que tantas vezes levam multidões à euforia nos festivais. Por isso este momento ficará registado na história. Os outros estarão nas memórias de quem os viveu até que o scroll das suas contas de Instagram mostre imagens mais recentes.
“Homecoming – The Live Album” é um álbum de Beyoncé e está disponível nas plataformas digitais numa edição da Columbia/Sony.
“Homecoming: A Film by Beyoncé” é um documentário e está disponível na plataforma Netflix.
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