Últimas notícias

“Era-me abstrato que as pessoas fossem compreender-me e aceitar de uma forma tão abrangente”

Entrevista de NUNO GALOPIM

Conan Osiris está prestes a atuar na primeira semifinal da edição deste ano do Festival da Eurovisão, onde irá apresentar “Telemóveis”, a canção de sua autoria com a qual venceu o Festival da Canção 2019. Aqui partilha connosco memórias das músicas, imagens e vivências que o inspiraram. Conta a história da canção e fala do impacte que “Telemóveis” está a ter em si.

Quais são as tuas mais antigas memórias com música?
As minhas memórias de quando era ptchipitchipi?… A memória mais antiga que tenho de música? Deixa-me mesmo pensar bem porque eu não me lembro… Sabes do que eu me lembro? A minha mãe tinha o vinil do Juan Luis Guerra das “Burbujas de amor”… Era um vinil cor de rosa com uns peixes e eu dizia-lhe: “mãe quero a música dos peixes”… Tinha menos de três anos. Foi na minha primeira casa… Era um bocado pequeno para ouvir rádio. Mas depois, quando comecei a ouvir as minhas próprias coisas, ouvia bué a Rádio Cidade e os Onda Choc, que também me abriam um leque de música internacional…

E o teu primeiro disco?
Lembro-me! Foi uns aninhos mais tarde. O primeiro CD que tive acho que foi dos Aqua ou dos Venga Boys. O Alice DeeJay foi para aí o terceiro. Também ouvia muito trance e cenas assim… Depois, com a chegada da MTV, também comecei a prestar atenção a montes de coisas pop, hip hop. Lembro-me bué bem do primeiro vídeo hip hop e do primeiro contacto que eu tive com uma coisa que seria mesmo a minha noção de hip hop. Era a cena do “Get ur freak on” da Missy Elliott… Lembro-me também de ter bastante contacto com uma coisa de que eu não sabia o nome do estilo. Era RnB… As Destiny’s Child com o “Say my name”. Não sabia o que aquilo era mas gostava. Só montes de tempo mais tarde é que percebi que aquilo era RnB e fui tendo o meu contacto assim com estas coisas. Tinha também um vídeo onde gravava videoclips da MTV que depois passava. Ou seja, era o conceito da cassete, de gravar cassete na rádio, mas já num formato de televisão. Não sei onde é que andam essas cassetes, mas tinha bastantes vídeos.

E quando é que te apetece deixar de ouvir a música dos outros e começar a fazer primeiras experiências tuas?
Uma das primeiras prendas que a minha mãe me deu foi uma guitarra que era um piano. Ou seja, era em formato de uma guitarra mas era um piano de brincar, e eu tocava lá. Mas isso era uma coisa muito primordial. Depois ela ofereceu-me um gravador. Isto eram sempre pequenos presentes de eu passar de ano ou de Natal. Ela ofereceu-me depois um gravador de cassetes que tinha microfone. E eu estragava as cassetes todas por cima com gravações minhas. Inventava músicas… Mas produzir foi bem mais tarde. Tive outras experiências de gravação ainda no PC do meu padrasto. Isso quando ainda não tinha o meu PC. E eram clipes só de voz… Quando finalmente tive o meu próprio PC é que comecei a experimentar com o Fruity Loops, que é um programa para fazer música.

A vontade para de apostar nisto, talvez não ainda como profissional, mas como alguém que já faz canções, nasce depois dessas brincadeiras todas?
Sim, exato. Não tinha aquele tio que toca guitarra… Nunca tive esse elemento na minha família… Não conhecia literalmente ninguém que tivesse alguma coisa a ver com música. Então todas as minhas experiências eram uma coisa muito primária, de um certo ponto de vista. Tinha que ser eu a fazer tudo, ou seja, não tinha o input direto de uma pessoa que dissesse “olha toca aqui” ou “vamos ao piano” ou whatever… Vêm daí todas essas influências tão dispares que eu tenho. Às vezes até era um bocado difícil tentar fazer qualquer coisa e de a finalizar, Até porque pensava: gosto de tanta coisa, o que é que vou fazer? Depois há esse processo de depuração de tudo aquilo para chegar ao que está dentro… Tens sempre mais ou menos um pensamento criativo. Há sempre a realidade que está dentro da tua cabeça mas, depois, o que está efetivamente nas tuas mãos. Às vezes lembro-me de sonhar com videoclips. Sonhava e ainda sonho com músicas inteiras. E penso: fogo, isto existe dentro da minha cabeça! O exercício é transformar depois aquilo conforme a forma como desenhas… Transportar para fora o que está na tua cabeça. E isso demora montes de tempo. Estudo quase todos os dias. É um estudar no sentido de explorar. Explorar o interior do software, os sons. Ver como diferentes sons ficam. Invisto muito tempo nessa parte.

Foi-te difícil passar para esse mundo? Ou seja, ir da imaginação à concretização para poder começar a partilhar com os outros o que estavas a fazer?
Sim a nível de partilha foi uma barreira bué grande. Uma coisa era eu fazer as coisas para mim e para o meu pessoal mais próximo. Outra era fazer uma coisa que eu achasse que era boa o suficiente para mostrar a toda a gente. Também tinha um bocado a ver com aceitação. Com autoaceitação. A partir do momento em que eu comecei a trabalhar, a sentir que, ya eu gosto disto… A partir do momento em que deixas de ter aqueles estigmas do que é ou não fixe… Imagina que eu não curtia a minha voz… Ainda hoje tenho alguns problemas com isso. Não é que seja a coisa mais confortável para mim ver vídeos com a minha voz. A minha voz sempre foi um elemento estranho de repetir. Ouvia-a nas gravações. Mas se houvesse um vídeo eu já ficava com vergonha. Isso de alguma forma ficou um bocado comigo até hoje. Embora tenha já conseguido ultrapassar bué… Mas tem tudo a ver com isso… Fazer esse mundo interior passar por esse funil de ir para fora.

E ir para fora implicou, a dada altura, não só gravações, mas também subir a um palco. Foi o passo seguinte que te obrigou a pensar que imagem devias ter… O pensar de uma imagem para te apresentares em público…
Acho que isso da imagem é totalmente igual e paralelo à cena da música. Desde uma tenra idade sempre me quis vestir de uma certa forma. Queria ter o cabelo de uma certa forma. Uma das minhas primeiras inspirações visuais, de características visuais, tem muito a ver com o Dragon Ball. E com Sailor Moon, eventualmente um bocado também… Essas duas coisas, entre outros desenhos, outros animes, marcou muito essa minha parte visual. Queria ter o cabelo comprido, queria ter um certo tipo de look, ter as calças, a roupa bué larga… Depois foi evoluindo, claramente até todos os elementos que existem hoje em dia. Que já são depurados com elementos de moda, elementos de exploração de culturas… Mil e uma cenas…

Essa ideia de exploração de culturas está muito enraizada sempre em ti. A colagem, o de cruzar universos, faz parte dessa tua procura de identidade?
Tem a ver com maneira como a minha vida foi sendo montada. Nunca tive muitas oportunidades para viajar… Então as minhas viagens eram todas feitas, basicamente, no YouTube. Explorar música, explorar vídeos… Tive uma época onde explorava só musica peruana, o que me influenciou de uma certa forma. Acho que às vezes tenho influências que, na realidade, não são obvias. Mas chega depois o dia em que me apetece fazer uma música onde se ouve um bocadinho de alguma coisa que tu propriamente podes não ligar logo à primeira… Ou seja, não fazia essa pesquisa no intuito de: “agora vou acumular aqui um monte de coisas para fazer música”… Fui ouvindo música, porque tinha de a ouvir, porque tinha de estar entretido com música na loja enquanto estava a trabalhar. E até na escola fazia mixtapes para levar para a aula de desenho. Todos os meses, um dos meus maiores objetivos era fazer a mixtape para a aula de desenho, o CD com aquelas 20 músicas. A primeira era qualquer coisa como a “Goodies” da Ciara e a última era a “Broken” da Amy Lee com os Seether… Eu organizava sempre esses CD de uma forma onde era party musicsurgia primeiro e ia acalmando até às músicas mais lentas, até à minha parte mais emotiva… Então essa pesquisa esteve sempre latente a partir do momento em que eu tive acesso à net, desde muito cedo. O facto de ter andado na escola no Cacém também foi importante. Tinha um acesso gigante a um mundo novo que nunca tinha experienciado em Lisboa. Fui esbarrando com coisas que pensei: “wow onde é que isto esteve toda a minha vida?”… De onde é que isto vem? Quero isto, eu vivo isto, eu sinto isto dentro de mim.

As muitas pessoas com quem te ias cruzando, por exemplo na loja, mas também no teu dia a dia, acabou também por te dar historias e temas para as canções?
Temas, não chegaria a tanto… Mais histórias e vivências. Fui conhecendo a natureza das pessoas. Às vezes mais lento, às vezes um bocado mais rápido. Às vezes forçosamente, às vezes de embate e outras por aproximação ao natural. Mas na loja foi o fechar final de uma secção. Ou seja, de um leque aberto de coisas que eu não sonhava: sobre a sexualidade, a intimidade das pessoas, autoestima, autoafirmação, tanta coisa de que eu não fazia a mínima ideia. Não foi exatamente o fechar um círculo de informação, porque não posso dizer que conheça a natureza humana na sua plenitude. Mas sinto que conheci muito, pelo menos, a forma como as pessoas comunicam. Aprender a lidar com as pessoas… Aprendi muito e isso depois também se reflete na maneira como falo musicalmente, naquilo que eu quero atingir com esta batida aqui, esta batida acolá. Lembro-me de passar a minha música na loja para ver algumas reações e de ver pessoas a dançar e a dizer: “que granda som” e mais não sei que. É óbvio que não me descosia e dizia que era minha. Mas pensava… “wow fixe”. Fazia só com as batidas, do género test drive. E era bué fixe ver as reações. Ou ver que alguém exclamava “isto é bué irritante”.

Como é que os teus três discos lançados antes de “Telemóveis” definem o teu percurso até aqui?
Eu abortei muita música, porque eu estava num espaço onde ainda não tinha bem a certeza da forma como queria comunicar. Então tenho quase dois álbuns de músicas abortadas, em inglês, coisas que decidi não fazer, batidas que decidi não avançar, coisas que eu abandonei literalmente e coisas que eu perdi inclusive também, e que estão antes disso. E depois disso, no “Silk”, quando comecei a pensar “ok ya já tenho músicas suficientes”, o pessoal começou a pedir-me música para runway. Tinha montes de amigos e conhecidos a estudar moda, então o pessoal pediu-me varias músicas para o Moda Lisboa, Portugal Fashion, etc… Desfiles de moda. É também por isso que o álbum se chama “Silk”, porque tem tudo a ver com o tema. E foi aí que eu pensei “wow, isto pode efetivamente ser um álbum, isto não me dá vergonha, isto é um avanço para mim e eu tenho de ter um filho, eu tenho de ter este bebé ”. Já estava farto de ter aqueles abortos, espontâneos, ou não, mas senti que, naquele momento, aquilo tinha que nascer. O “Musica Normal” já foi querer dar esse avanço e explorar ainda mais essa continuação das minhas vivências do dia a dia e dessas viagens. E também um pouco condensar tudo aquilo de que eu gostava e de que gosto.

E depois veio o “Adoro Bolos”…
Aí já foi mesmo a minha autoconfiança a dizer: “pronto, olha, não tenho vergonha de cantar em português, não tenho vergonha de me ouvir em português”. A minha mãe ouvia muito fado. Para mim era inconcebível cantar fado porque tinha vergonha. Não só porque achava que não ia conseguir cantar bem como não tinha autoridade sequer para cantar fado. Não tinha idade. Tal como dizem “esta miúda não tem idade para cantar”, quando há esses festivais do fado. Houve sempre essa coisa de o fado e o cantar em português é uma coisa que tem de ser muito respeitada, é uma coisa super séria. Só quem tem vida é que canta isso. Então chegou um ponto em que eu pensei “sit the fuck down”. E fui só fazer a minha cena.

O João entrou quando na tua vida?
O João é irmão da Sereia, uma amiga minha desde o sétimo ou oitavo ano, no Cacém. E então, quando ele começou a ganhar mais idade, isto de uma forma muito resumida, começou a juntar-se a nós nas festas. E começou também a ser nosso amigo. Muito embora a irmã tivesse a mania de “porra, arranja os teus amigos, não venhas para o pé de mim, não venhas para o pé dos meus amigos”. E então ele começou se a juntar. E pronto, a puberdade bateu, e ficou mais ou menos adulto. E foi assim que o conheci.

E o que trouxe ele às tuas atuações?
Somos muito próximos a nível de influências musicais e também ao nível de dança e cultura e tudo o mais… Temos a confiança de que ele pode ser o espelho daquilo que eu poderia querer fazer se fosse eu o bailarino, o meu próprio bailarino. Então é por isso que montes de vezes não temos coreografia ou não temos propriamente uma regra específica. Porque, entre nós, sabemos que conhecemos a minha música suficientemente bem para bater tudo certo de uma forma effortless, de uma forma sem esforço. E então é basicamente isso que ele traz. É a representação do nosso mundo que é comum também a outros amigos nossos e que está latente em nós. Poderia ser tão batalhado para “arquiteturar”, mas não. É que, simplesmente, nasce assim.

Falemos agora da canção “Telemóveis”. Como acolheste o desafio, porque o aceitaste e porque decidiste ser também tu a interpretar a canção?
Já havia a piada, entre os fãs e o pessoal, de que, fixe fixe, era se o Conan fosse ao festival… Já existia isso e eu olhava do género… “claro… Tipo, achas? E de repente convidaram-me, e eu pensei: “Porque não?”. Ok, é um concurso… Mas eu não perco nada em tentar e o que me aguça sempre é criar, regardless do resultado que vá haver. E pensei “ya quero fazer uma música, vou fazer”. E basicamente fiz, e foi literalmente só isso. Quando eu acabei de fazer a música eu pensei “fucking quem é que vai cantar isto?” Se não for eu, como é que eu vou impingir isto a alguém? Quem? Não ia ser possível… Então pensei “ya olha,agora já fiz isto assim, vou ter de ser mesmo eu”. E ya…

Como tiveste a ideia para a canção, como é que a trabalhaste…
Acho que eu tinha a batida primeiro. Não tinha nada a ver com o que ela é hoje em dia… Tinha só a base, sabia que queria uma coisa mexida e que queria que fosse um bocado um menu de degustação da minha própria música, de uma certa forma. Então acho que a parte que mais aprimorei foi isso. Tentar pôr os ingredientes numa razão que não fosse enjoativa em nenhuma parte, para ser um bom menu de degustação, para não ter demasiado de uma coisa e outra de menos. E acho que foi um bocadinho por aí. Pôr todos os elementos que me fazem nexo. Literalmente todos, desde a parte mais “pastilha” à parte mais emocional, ou mais profunda, digamos assim. E passando pelo cromático da própria música em si, sobre as diferentes partes que a compõem. É uma das músicas que mais conseguem representar o que eu posso visitar, e qual é a minha zona de conforto a todos os níveis.

Na primeira apresentação do Festival da Canção 2019, em janeiro, como é que foi estar no meio dos outros participantes?
Eu não senti aí a sensação de família. Fui lá e pensei “deixa lá ver onde é que eu estou a pisar”. Não numa perspetiva de desconfiança mas de “quero ver a vibe, quero ver como é que as pessoas se relacionam entre elas, ver quanta catfight existe aqui” antes de me entregar mais ou menos. Entretanto fui vendo mais ou menos… Estava lá também a Surma e os D’Alva que eu também conheço doutros carnavais. Dou-me bué bem com eles. Essa parte foi familiar… Quando sai a musica, começa a ser a cena. Eram as minhas pessoas que já estavam comigo com as pessoas de fora… E esse embate foi uma coisa bué engraçada na realidade porque foi não só as pessoas a descobrirem que isto existe, que isto é uma cena, como a descobrirem que já existia há bué tempo. Esse contraste entre as próprias pessoas e os diferentes consumos, a maneira como é consumido de tanta forma diferente… Os targets, como às vezes querem chamar, serem tão diferentes. As pessoas serem tão heterogéneas na maneira como me abraçaram… Essa parte foi toda super excitante.

E chegou a semifinal do Festival da Canção…
Aí foi toda aquela preparação, o contacto com um programa ao vivo e o com a coreografia da nossa cena que foi uma primeira experiência. Nunca tínhamos feito uma coisa de uma forma em que fosse suposto bater tudo naquele momento, naquele segundo. E isso também foi um desafio e super positivo e construtivo para nós. Porque, at the end of the day, fazer as coisas sempre de uma forma diferente, às vezes, até dá mais trabalho e mais insegurança. Embora seja mais livre e mais aberto do que ter alguns elementos free e outros elementos marcados. Há que haver esse balanço, e ganhar esse balanço. E, claro, houve todo o convívio entre os colegas, o que foi uma coisa de que eu não estava nada à espera. E toda a validação que houve entre nós. O mais importante para mim, acho que foi o facto de tu não estares a ver pessoas a respeitarem-se porque estavam num espaço, mas a ver as pessoas, sim, a respeitarem-se mas a darem o passo à frente. OK, eu respeito a tua cena, mesmo que não tenha um cu a ver com a minha. Eu nunca iria ouvir essa música mas, aqui e neste momento, e porque tu estás a ser fixe comigo e eu entendo a tua vibe, isso faz nexo para mim. E isso foi uma coisa também nova para mim. Esse foi contacto foi uma coisa nova e inspiradora até.

E, depois, a Final em Portimão…
A Final foi um bocadinho a repetição da semifinal em termos de convívio, mais alargado. E depois o facto de o palco ser maior, o sítio ser diferente, ser uma azáfama maior… O contacto com uma coisa mais grandiosa. O contacto com, por exemplo, ter os fãs do outro pessoal a assobiar-me… Foram contactos necessários para eu entender a experiência do festival a nível humano. Como as pessoas se movem a consumir a música e as músicas do festival, E, honestamente, a melhor parte foi dar a oportunidade às pessoas de verem que nós realmente tivemos uma conexão atrás das câmaras, que realmente estávamos ali pela música, mas mais do que isso, para celebrar e validarmo-nos uns aos outros, na nossa polivalência. E acho que isso foi uma das coisas que mais passou para toda a gente. Ninguém consegue dizer que o festival foi super homogéneo, que todas as músicas eram iguais, que não havia nenhum ponto de interesse, que não havia nenhum ponto de discussão. Havia muitos pontos de discussão, havia muito mato aberto, houve muito mato aberto por nós todos…

Falaste então muito da aceitação tua perante os outros. O festival ajudou a sentires isso mais ainda?
A cena foi não que eu não tivesse a minha autoestima em baixo, nada disso, Sim sem dúvida. Não é que duvide de mim ou tenha baixa autoestima. A minha autoestima está fucking amazing… Mas era-me um bocado abstrato que as pessoas fossem compreender-me e aceitar-me de uma forma tão abrangente. O facto de toda a pontuação ter sido a que foi é obvio que foi uma coisa chocante para mim. Porque pensei que eventualmente ia haver algumas pessoas a votar em mim para me apoiar e tudo o mais… Mas não de uma forma super massiva… Venho de um sítio onde a minha existência muitas vezes não é validada da forma mais realista daquilo que eu realmente sou. E então, estar com uma coisa tão verdadeiramente minha como a minha música, no festival, que é uma coisa abrangente, e acontecer aquilo que aconteceu, é obvio que é uma validação não só minha mas também de muitas outras pessoas. E então foi isso que eu quis trazer para cima… Do género: Obrigado! Literalmente obrigado não só por mim mas por toda a gente que possa eventualmente sentir-se representada por mim ou por algum elemento que eu possa estar a transmitir.

Como pensaste o aspeto visual da canção? A roupa, a luz, a joalharia, como envolver o João…
Acho que tem a ver com símbolos que quis transportar… Toda a parte visual tem a ver muito com coisas que eu sempre quis dizer a nível de símbolos, basicamente. E foi algo que também nasceu de uma forma um bocado natural. Foi nascendo de umas duas ou três ideias e, depois, quando tudo finalmente estava montado, foi cada vez fazendo mais sentido. E vai continuar a fazer.

Uma das histórias dos bastidores do Festival da Canção é a ida a Portimão para filmar o “postcard” (o vídeo de apresentação que antecede cada canção)… E deste por ti no mundo do golfe… Foi inesperado?
Ai pá, ai pá, ai ai ai … Isso foi só a cena mais surreal do planeta. Foi eu descer para o Algarve, um sítio onde eu sempre passei férias, porque a avó do Ruben [o stylist que trabalha com Conan Osiris] tinha casa em Alvor. E de repente eu estava a descer para o Algarve para filmar um vídeo de mim a jogar golfe, uma coisa que eu nunca joguei na minha vida e uma que eu sempre passava de fora… Uma coisa super alienígena da minha vivência em toda. Acho que provavelmente ninguém na minha linhagem genética jogou golfe na vida… Simplesmente. OK, vou jogar golfe. Conheço este professor, a pessoa mais lovely, dentro da sua educação de golfe. Ele jogava golfe para aí desde os seus 16 anos acho eu. E estava ali com toda a disposição do mundo, todo o respeito do mundo, a ensinar-me. Põe a mão assim, põe a mão assado e dá assim, dá assado. É óbvio que lhe arranquei para aí três metros quadrados de terra só a bater com o taco no chão. Mas foi tranquilo… Ele teve paciência para mim na mesma. A cena foi, aquela situação. E depois também estar a trabalhar com uma equipa que fez com que aquilo parecesse um filme. Eu a jogar golfe e de repente está montado de uma forma onde parece uma coisa super excitante e super glamorosa. Quase, num certo sentido, de contraste entre a minha vivência e a minha vida com a vida de golfe, que são extremos opostos.

Já agora conta como foi fazer o postcard para o Festival da Eurovisão, no Mar Morto. Ir pela primeira vez a Israel e fazer o postcard foi certamente diferente da aventura com golfe no Algarve…
Foi super diferente, para já, pela diferença de ir lá. Entrar lá, entender montes de símbolos, entender alguma coisa de um país que é tão longínquo em relação a nós. E depois o facto de filmar no Mar Morto. Senti que aquilo era um bocado um sonho. Não no sentido de “wow sempre sonhei em estar no Mar Morto”… Mas um sonho na questão do “o que é isto?”. Como é que eu estou no Mar Morto, com esta roupa portuguesa, com estes bailarinos não sei de onde, numa crosta de sal, numa ilhota de sal, num sítio onde não há animais mas depois de repente aparece uma uma borboleta? O meu telemóvel recebeu montes de mensagens a dizer “bem-vindo à Jordânia”, “bem-vindo a Israel”, coisas em árabe e eu a pensar: “a minha vida é isto, agora aqui esta é a minha vida, ok tá super tranquilo”. Sempre com essa “dreaminess” de uma coisa que é tão estranha. Mas foi exigente esse dia. Estive para aí umas sete horas a gravar? Mais, a dançar, intensivamente, num sítio onde, se não houvesse agua engarrafada, eu morria. E basicamente foi isso. Mas foi fixe.

Falas no facto de esta ser agora a tua vida. Antes de ganhares o Festival da Canção já pensavas que esta possibilidade de cantar no Festival da Eurovisão poderia entrar na tua vida?
Achas? Algum dia eu pensei que eu ia sequer passar a semifinal? Eu ia assim: “Olá, olhem, sabem uma coisa? Eu existo, estou cá, já sei que provavelmente vocês vão me mandar com um cagalhão na testa mas, tranquilo, eu vim cá na mesma”. De repente eu passo? OK, estou na final, YIKES. Oh, mas na final existem o Matay, os Calema… É óbvio que não vou passar, né? E, de repente, começo a receber aquela pontuação… Nunca pensei que ia.. Se as pessoas soubessem o quão longínquo isto é da conceção da minha vida… Se eu algum dia dizia que isto era uma coisa normal, se eu algum dia dizia que o João ia participar num videoclip da Madonna e a Madonna ia lhe dar uvas à boca? Não.

Como é que depois começaste a lidar com tudo isto?
Primeiro veio a parte do pensamento. OK, o que é que é preciso, como é que eu preciso de me instruir para lidar com todo este novo mundo? Quais são as defesas que tenho de ter e quais é que eu tenho de baixar? O que é que eu tenho de adaptar? Porque acredito muito na adaptabilidade e em tu seres moldável. Há momentos em que tens de ser terra e há momentos em que tens de ser água. Isto foi um bocadinho Gustavo Santos não foi? Mas ya, é verdade. Tens de ser moldável. E a cena é o quanto é que eu posso ser moldável sem perder a minha identidade. E ainda ser eu e representar aquilo em que eu acredito ir representar e um discurso que faça minimamente nexo, seja à ida seja à volta, para comigo próprio e com a minha verdade absoluta. O que é que eu poderia aprimorar em toda a minha existência, tanto de relação como existência visual, como a própria performance. Basicamente, como é que eu me ia preparar para ir, a todos os níveis.

Com o CD single promocional do “Telemóveis” tiveste, pela primeira vez, um disco físico teu…
Isso foi bué chocante. Só literalmente há bocado, quando vocês me disseram “ah foi o teu primeiro disco físico”, embora seja mentira… Quer dizer, só meu é verdade, porque o primeiro, primeiro, primeiro foi aquela compilação, portanto, sim. Mas com a minha cara foi o primeiro, e fiquei assim… “ah, que giro!”. Mas só fiquei assim há bocado, por pensar que era o primeiro. Ainda não tinha pensado nisso, às vezes há coisas que eu não penso.

Foste vendo os memes e as mensagens e imagens que foram surgindo?
É basicamente as piadas que eu fazia com os meus amigos a serem feitas por outras pessoas, e a serem assim: “olha, está aqui mais uma travessa de piadas para ti”…

Como é que ias lidando com estas representações de ti?
Acho sempre bué piada quando alguém faz uma coisa produtiva. E se foi feita com vontade, se todas essas cenas são filmadas e combinadas com vontade… Às vezes os vídeos que os pais tiram dos filhos… Fico sempre super parvo quando os miúdos apanham as minhas cenas porque, quando estou a fazer música, não penso “ih ya as crianças vão gostar”… Mas isso é uma coisa que me bate… Ver os miúdos a ficarem excitados com a música é uma cena brutal. Os miúdos e não só. Às vezes digo miúdos para toda a gente, porque na realidade toda a gente é um miúdo.

Cantar na Eurovisão faz-te sentir alguma responsabilidade acrescida ou é semelhante a outras coisas que tenhas feito?
Acho que quando tens um trabalho onde estás a dizer alguma coisa, nem que seja por ti, já tens a responsabilidade de te defender a ti próprio e de te representar a ti próprio. Secundariamente, estás a representar as pessoas que se identificam com o teu trabalho. E depois estás também a representar toda a ideia da representação de Portugal. Mas imagina há simbologias com as quais eu me identifico e outras não… Não gosto da simbologia da conquista e da cena de “vamos aqui ganhar…” Calma, toda a gente vai fazer o melhor e o mais pleno que consiga, toda a gente vai tentar fazer o melhor que consegue actually. Não gosto de falar quando as coisas ainda não estão feitas. Quando a coisa existe, logo nós falamos. Não gosto da cena de “vais ver, vais ganhar e quando voltares toda a gente que anda a falar mal de ti vai ter de morder a língua”. Não… Vai acontecer o que tiver de acontecer. E quando eu voltar as pessoas vão-se sentir da forma que elas mais se adaptarem a sentir. E isso é o que é. Ou seja, para resumir, há essa responsabilidade. Mas há também outras responsabilidades mais importantes a salvaguardar que não são tão bélicas, digamos assim.

Transcrição editada da entrevista que serviu de base ao documentário da RTP “Conan, Rapaz do Futuro”.

1 Comment on “Era-me abstrato que as pessoas fossem compreender-me e aceitar de uma forma tão abrangente”

  1. Pronto, já passou! Pode finalmente voltar a editar as excelentes críticas a discos e filmes!

    Gostar

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

%d bloggers gostam disto: