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Um ajuste de contas com a verdade

Texto: NUNO GALOPIM

Há 30 anos um grupo de cinco menores negros e latinos foi condenado por uma violação que nenhum deles havia cometido. Ava DuVernay mergulha nas memórias do que então aconteceu em “When They See Us”, cujo impacte está a causar uma onda de indignação face ao que então ocorreu.

Uma série não altera a história… Mas pode ajudar a mudar a perceção que temos das coisas que aconteceram. Mesmo na reta final dos anos 80 a uma violação de uma mulher branca no Central Park (Nova Iorque) deu origem a um caso que começou por gerar uma onda de condenação pública (alimentada pela imprensa) antes mesmo de ter chegado a sentença nos tribunais. O atual presidente norte-americano foi uma das vozes que mais se fez notar entre o coro popular irado, chegando mesmo a pagar a publicação de anúncios na imprensa nos quais usava este caso para pedir o regresso da pena de morte ao estado de Nova Iorque… Os cinco acusados seriam dados como culpados. Tinha, na altura, idades entre os 14 e os 16 anos e todos eles deixaram sempre claro que nada tinham a ver com o caso e que, mesmo tendo estado naquela noite no Central Park, não tinham sequer avistado a vítima… Foram todos condenados. Cumpriram sentenças… Até que, em 2001, um outro homem admitiu a culpa, facto que as provas então colhidas corroboraram… Os cinco condenados foram dados como inocentes… E a cidade resolveu o erro com uma indemnização… Falta apenas lembrar que os cinco rapazes, que acabariam conhecidos como os “Central Park Five” partilhavam algo em comum: a cor da pele (que não era branca).

Apesar de ter já havido um documentário sobre este caso – “The Central Park Five”, assinado por Ken Burns, Sarah Burnes e David McMahon, estreado em Cannes em 2012 – está agora a dever-se ao impacte da minissérie de quatro episódios “When They See Us”, de Ava DuVernay (a mesma autora de “Selma”), a criação de uma onda de indignação pelos erros que todo o processo somou. Com um trabalho de argumento bem estruturado, que observa não apenas o arco geral do coletivo mas mergulhando uma a uma nas histórias dos cinco protagonistas, uma brilhante direção de atores e evidente talento na realização, “When They See Us” narra como partiu do aparente excesso de zelo de uma procuradora (que mais tarde acabou conhecida como autora de romances policiais) a transformação dos rapazes detidos naquela noite no parque de eventuais testemunhas em suspeitos. A série acompanha, com visceralidade, a manipulação das declarações obtidas em 30 horas de detenção, sob coerção e muitas vezes sem a presença de adultos responsáveis pelos menores em questão, a sede de justiça popular semeada pelos media e, depois, o que parece ser uma condução tendenciosa do caso jurídico.



A etapa vivida nas instituições de detenção (particularmente violenta no caso do mais velho dos cinco rapazes, então já com 16 anos e, por isso, apto a ficar numa prisão de adultos) e as dificuldades na reinserção social de todos eles, carregando sempre o fardo de um passado que não era o seu mas a eles tinha sido atribuído, ocupam a segunda metade da série, observando como os erros podem gerar consequências ainda maiores com o passar do tempo.

Talvez a série não dedique muito tempo ao modo como, já na alvorada do século XXI, o caso foi sujeito a uma reavaliação e investigação. O choque de verdades fica sobretudo retratado num encontro de uma nova investigadora com a procuradora implacável entretanto feita autora de sucesso e aqui brilhantemente interpretada por Felicity Huffman. O modo como esta se mantém firme na narrativa de culpa dos “cinco” (dando o real culpado como um “sexto”) é fiel ao discurso que ela mesmo manteve depois da revisão do caso. Linda Fairstein (assim se chama a antiga procuradora) está a ser, agora, a primeira figura em maior evidência como consequência da minissérie de Ava DuVernay. Na sequência de uma campanha de indignação nas redes sociais editor livreiro rescindiu com Fairstein, que há poucos dias publicou um texto no “Wall Street Journal” mantendo a sua visão de que os “cinco” rapazes “não são completamente inocentes” e que Ava DuVernay a difama na série. Por sua vez a “Rolling Stone” acaba de publicar um texto no qual a realizadora explica como convocou muitas das figuras ligadas ao caso durante o processo de escrita do guião, vincando como Linda Fairstein tentou “negociar condições” para falar com a realizadora, incluindo uma “aprovação do argumento”… Perante um não (naturalmente) de Ava DuVernay, o encontro não aconteceu…

“When They See Us” é não apenas uma magnificamente bem construída minissérie de televisão como mostra, apesar de retratar uma história com 30 anos, um caso que ressoa no presente. A presença de imagens (reais) de Trump na época é apenas um dos elementos de ligação entre a realidade e a construção de uma ficção realista que definem o que aqui vemos…

Quanto aos ecos da memória deste caso é já sabido que não se vão esgotar no sururu que está a ser gerado pela série. Uma ópera, com música de Antony Davis e libreto de Richard Wesley, vai levar este tema ao palco muito em breve (a estreia decorrerá este verão em Long Beach)…

“When They See Us” é uma minisérie de quatro episódios e está disponível na plataforma Netflix.

E aqui fica o trailer do documentário sobre este mesmo caso estreado em 2012:

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