Ver Nick Drake para lá do espelho
Texto: NUNO GALOPIM
As notas concisas e claras do diário de Rodney, o pai de Nick Drake, registadas entre 21 de março de 1972 e o dia 25 de novembro de 74, no qual o corpo de jovem músico foi encontrado, já morto, na sua cama, em casa, colocam-nos dentro do que, ali ele mesmo escreve, foi então “o fim da tragédia de uma luta de três anos”. O percurso de progressivo afastamento que Nick Drake viveu após a criação de Pink Moon (álbum de 1972), tantas vezes abordado em artigos publicados (sobretudo depois de estabelecida uma relação de culto com a memória do músico), tem aqui um definitivo retrato. Troca-se a mitologia pela realidade. O olhar de perto, as jornadas de silêncio na sala de música da casa familiar, os planos de um eventual novo disco que Nick chegara a comunicar (em julho de 74) ou até, poucos dias antes da sua morte, os planos de uma ida a Paris para procurar trabalho (que acabaram em Dover, voltando para trás logo a seguir). Este é um dos olhares “definitivos” que encontramos em Nick Drake: Remembered for a While, livro coordenado por Gabrielle Drake (a irmã do músico) e Cally Callomon (que tem a seu cargo a gestão do legado de Drake) que representa a mais suculenta leitura sobre música surgida em 2014.
Edição de capa dura, com 445 páginas profusamente ilustradas (com fotografias de família, documentos pessoais e as páginas escritas pelo próprio Nick, com os poemas que transformou em letras das suas canções), o livro procura ser assim o mais amplo olhar alguma vez publicado sobre um músico que, apesar de quase invisível em vida, é hoje apontado como uma das mais importantes e influentes presenças criativas do seu tempo.
Se hoje o seu nome é reconhecido e tido entre referência maior nascida da cena folk britânica de finais dos sessentas, a verdade é que, em vida, a música de Nick Drake passou longe das atenções. A sua morte, demasiado cedo, com apenas 26 anos (em 1974), impediu que a sua obra fosse para lá de três álbuns de estúdio (aos quais o tempo acrescentaria depois alguns registos inéditos lançados postumamente). Quando, em 1979, uma antologia se propôs a revisitar o que era até então uma música quase desconhecida, tomou por título Fruit Tree, na verdade o nome de uma das primeiras canções que gravou e na qual passava uma visão cética do reconhecimento e fama que, na altura, nem se calhar ele mesmo julgaria tão profética.
Fame is but a fruit tree
So very unsound.
It can never flourish
Till its stock is in the ground.
So men of fame
Can never find a way
Till time has flown
Quase ignorado no seu tempo – apesar de algumas críticas favoráveis e de cedo ter cativado atenções junto dos que o acompanhavam de perto –, a verdade é que, alguns anos depois da sua morte, o produtor Joe Boyd (que trabalhara com Drake em Five Leaves Left (1969) e Bryter Later (1970), os seus dois primeiros álbuns) começou a receber cartas que davam conta de uma curiosidade (até então nunca assim manifestada) pela música do jovem cantautor. Os pais do músico começavam a acolher em casa admiradores que queriam conhecer o lugar onde vivera (e morrera), alguns deles tendo mesmo pernoitado em Far Leys, a vivenda rural da família. Anos mais tarde, em 1985, Life in a Northern Town, canção dos Dream Academy, evocava a memória de Nick Drake e, pouco depois, uma nova antologia, e, com alinhamento reunido por Joe Boyd, um disco com inéditos (Time of No Reply), chamava novas atenções, que aumentariam significativamente de volume quando, anos mais tarde, a canção Pink Moon acabaria utilizada num anúncio de uma marca de automóveis. Houve reedições, novas antologias. E de talento invisível Nick Drake viu-se (justamente) transformado em figura de culto.
Seguiram-se os livros, entre os quais uma belíssima biografia publicada em 1997 por Patrick Humphries – The Biography of Nick Drake (Bloomsbury) e até mesmo um volume da série 33 1/3 dedicado a Pink Moon, assinado por Amanda Petrusich (Continuum, 2007).
Lançado para assinalar os 40 anos da morte do músico, Remembered for a While procura, como o explica Gabrielle numa nota de abertura, ir para além do que se escreve muitas vezes sobre o seu irmão. “As pessoas que tentaram analisar Nick, numa tentativa de o ancorar nos seus mundos, acabaram mais a expor a si mesmas que ao assunto” que deveriam tratar. Comparando o irmão a um espelho, que acaba na verdade por revelar quem o tente iluminar, Gabrielle explica que concebeu este livro não para propor um ensaio analítico sobre Nick Drake, mas antes para tentar alguns olhares vindos de lado, tentando “lançar frestas de luz sobre o poeta, o músico, o amigo, o filho, o irmão, que era tudo mais que isto, e tão difícil de definir como a neblina matinal”.
Convenhamos que é bem-sucedida. Bem arrumado, o percurso através destas mais de 400 páginas começa pelo registo biográfico da infância e juventude, sublinhando o desportista reconhecido e o músico emergente que nele amigos recordam, num retrato que as cartas por si redigidas e trocadas (aqui reunidas) ajudam a compor. Chris Haley analisa depois as canções anteriores aos seus discos uma a uma. E Pete Paphides escuta os álbuns, ao detalhe, um a um, faixa a faixa, num percurso entre a música e os espaços de vida pessoal que conhece janela extra de leitura através de uma entrevista, dividida em blocos temporais, conduzida pela irmã Gabrielle e por textos complementares seus. Há um impressionante registo completo das atuações ao vivo (apenas 30, entre uma data incerta em 1968 na Bateman Room Concert em Cambridge a uma participação, de 15 minutos, num espetáculo de beneficência no London Palladium em abril de 1973), acompanhada por recortes de imprensa e flyers promocionais. Estão aqui os artigos publicados sobre a sua obra em vida e também os obituários, mais alguns textos mais recentes, entre eles o magnífico Exiled from Heaven, de Ian McDonald, publicado numa edição especial da Mojo. E depois uma série de depoimentos, uns de figuras mais próximas, outros de admiradores, uns do seu tempo, outros dos nossos dias.
Em conjunto serve-se um olhar bem documentado, incrivelmente próximo. Resta saber se definitivo. Porque, como em qualquer espelho, a iluminação que sobre ele incide pode revelar novas imagens e pontos de vista.
“Remembered for a While”
editado por Gabrielle Drake e Cally Callomon
John Murray, 455 páginas
ISBN 978-1-444-79259-1
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