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Poesia como forma de martelar o mundo

Texto: HELENA BENTO

Cláudia R. Sampaio é guionista e poeta. Escreveu uma longa-metragem, séries e telefilmes. No ano passado, publicou o primeiro livro de poesia, seguido de um segundo, este ano. Apesar disso, diz que nunca decidiu que ia ser poeta, e que o que gostava mesmo era de escrever romances.

Cláudia R. Sampaio

Cláudia R. Sampaio (n. 1981) diz que às vezes é como se tivesse heterónimos. Está longe de querer comparar-se ao poeta, por isso explica: há a Cláudia durante o dia, que se levanta para escrever guiões de telenovelas, e há a Cláudia depois de jantar, que se transforma pondo “o bigode Fernando Pessoa e o chapéu” e se senta para escrever poesia. A Cláudia que conversa connosco, na esplanada na parte de trás de um café na zona dos Anjos, em Lisboa, pede desculpa pelo “ar cansado e olheiras” com que nos recebe. Vai mudar de casa nos próximos dias, é a sétima vez nos últimos anos, e por isso tem andado numa azáfama entre chamadas para atender e o trabalho que tem mesmo de ser feito. Ouvindo-a dizer isto, sentimo-nos gratos por ela estar aqui.

Sobre o trabalho de guionista para telenovelas, diz que foi uma escolha em parte motivada pela “desilusão pós-faculdade”. Estudou Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema, antigo Conservatório Nacional. No terceiro ano do curso foi convidada por um dos seus professores, Joaquim Sapinho, para ser guionista na produtora Rosa Filmes. Lembra-se de ouvir o também realizador dizer que Portugal tinha um problema de escrita, de guião, que não havia histórias para contar porque não havia quem as soubesse contar bem. Enquanto trabalhava na produtora, escreveu uma longa-metragem a meias com outro aluno da faculdade (4 copas, realizado por Manuel Mozos, que estreou em 2009). Ao fim de dois anos, foi despedida e aí virou-se para televisão. Foi aderecista, escreveu séries, dois telefilmes, e de há uns para cá escreve diálogos de telenovelas. Perguntamos-lhe quais e ela responde de uma forma que a muitos há de parecer deselegante, mas a ela pouco importa: “Escrevo tudo o que aparecer”. E se provas forem precisas, ei-las: “Até já escrevi Morangos com Açúcar. Gosto de dizer isto, as pessoas têm sempre reações engraçadas”. A atitude mais comum seria ter pudor em revelá-lo, mas Cláudia não tem. “É um trabalho que até acaba por ser divertido. Se não me orgulho muitas vezes disso é por causa do produto final, que muitas vezes não passa pelos guionistas, mas sim pela produção, pela qualidade dos atores, passa por tantas coisas que me ultrapassam”. Não considera que escrever guiões para telenovelas ajude à sua escrita, à escrita da Cláudia depois de jantar com bigode e chapéu Fernando Pessoa, porque a linguagem é “completamente diferente, é quotidiana, é simples, é a realidade. Não há poesia nas telenovelas”. Para desenvolver e aperfeiçoar essa linguagem, que não é a que lhe sai com mais naturalidade, ajuda-a passear na rua e escutar pessoas de várias classes sociais e perceber de que modo se dirigem umas às outras, o que dizem e o que não dizem. “Hoje em dia foco-me em escrever uma cena o melhor possível”.

Cláudia escreve poesia desde que entrou para a escola primária (escola dos Olivais, em frente ao prédio onde viveu até aos 21 anos). Começou a “juntar as letras” nessa altura, é assim que diz, e dava-lhe para escrever em verso. Quando a professora lhe pedia composições, entregava quadras, “daquelas básicas, a rimar”. Tem uma na cabeça, que sai um pouco destrambelhada, sai assim – “A minha mãe é muito bonita, não sei quê e os olhos azuis como o mar, a minha mãe ensinou-me a amar” – mas não tem a certeza se a escreveu. A certa altura a professora, desconfiada, chamou a avó de Cláudia à escola (a mãe trabalhava de sol a sol, o pai saiu de casa quando era bebé e foi criada, filha única, pela avó) para lhe perguntar quem é que escrevia aquelas quadras, ao que a avó, analfabeta e alentejana até à espinha, respondeu: “Eu? Olhe, eu nã fui que eu nã sei escrever nem ler. A minha filha chega a casa do trabalho às tantas, é a minha neta, entã quem é que ia escrever?”

Cláudia é muito próxima da avó (nem precisava de o dizer, percebe-se bem quando fala sobre ela). Era a avó que a levava todos os dias ao ballet (que praticou dos três aos 14 anos, porque queria, “como todas as meninas”, ser bailarina). Era a avó que a levava a visitar os museus de Lisboa, porque gostava, e porque achava que ia fazer bem a Cláudia. Ela, reformada, não precisava de pagar, e a neta, miudinha, também não. Por isso podiam ir. Há alguns anos, a avó caiu e partiu a anca. Tinha quase 90 anos. Os tratamentos, operação e medicação, aceleraram a cegueira causada pela diabetes, e acabou por perder totalmente a visão. Deixou de sair de casa sozinha, ela, que “passava o dia na rua a fazer tudo”. “É uma coisa que me dói mesmo muito, saber que ela está completamente lúcida, mas que não vê e está deprimida por causa disso. Diz-me muitas vezes que não está cá a fazer nada porque não nos vê”. O avô, esse, também alentejano, trabalhou largos anos na jardinagem e depois no Campo Pequenos, nas touradas, a limpar as arenas. Cláudia era pequena e lembra-se de ouvi-lo contar histórias e anedotas, e lembra-se também de o ver sair de casa, pela madrugada, para ir apanhar o comboio em direção à Costa da Caparica, e voltar horas mais tarde. Desde então, é isso que ele faz, todos os dias. Quando vai, passeia, e apanha conchas à beira-mar. Depois volta. Assim, sem se desviar, todos os dias.

Mas voltemos à escrita. Há cerca de dois anos, Cláudia decidiu reunir alguns poemas que havia publicado no seu blogue (Genocídio Poético) e enviá-los para editoras. Foi à internet e fez uma lista com contactos de editoras, desde as mais pequenas às maiores, algumas já conhecia, outras nem por isso, e foi de uma dessas, das que não conhecia, que acabou por ter uma resposta: “Olá, Cláudia. Eu e o Nuno gostámos muitos dos teus poemas e queremos publicar-te”. Foi aí, na editora do lado esquerdo, dirigida por Maria de Sousa, poeta e tradutora, e Nuno Abrantes, que publicou o primeiro livro, Os Dias da Corja, em 2014. Gonçalo M. Tavares assina o prefácio: uma nota breve enviada com um pedido de desculpas por ser tão breve, esperando que as palavras, apesar de breves, sejam suficientes. Diz assim: “A poesia de Cláudia Sampaio como forma de martelar o mundo. Saem de origens profanas e domésticas, domesticamente profanas, e atiram-se ao leitor como se estivessem esfomeadas e com raiva, eis as palavras nos poemas de Cláudia Sampaio. Saímos menos vivos da leitura destes versos, e a isto chama-se benigno aumento da percentagem de sensatez”. Cláudia acha que foram suficientes. Leu o Jerusalém de uma assentada. Ficou “obcecada com aquilo”, leu o Uma Viagem à Índia, leu o que havia para ler de Gonçalo M. Tavares. Por isso, não podia ter ficado mais satisfeita com a apreciação. Mais tarde, ao lermos pela segunda vez alguns versos do primeiro poema do livro, Erro de Sintaxe, vêm-nos à cabeça as palavras do escritor. E os versos, esses, dizem assim: “Não sou capaz é de silêncio / não dá lucro, não faz viver / o silêncio incorpora sempre / uns braços cruzados, uma desistência / pendurada na língua / um ar de lesma muda, sem opinião / e eu até posso perder / mas aos pulos, de socos no ar / montada num canhão de bandeira”.

Este ano publicou o segundo livro, A Primeira Urina da Manhã, pela editora Douda Correria, dirigida por Nuno Moura e Joana Bagulho. Os poemas foram escritos em duas semanas, e o livro, ao contrário do primeiro, que contém poemas “mais avulso”, escritos sem o objetivo de serem reunidos em livro, tem uma temática mais vincada – o abandono, a solidão e a doença mental – e “foi pensado como um todo, começar aqui e acabar ali”, o que se reflete também na ordem dos poemas. Quando a editora teve acesso às primeiras provas, Cláudia foi aconselhada a alterar a ordem do primeiro poema, que era “demasiado forte” para primeiro poema. Não cedeu, não por teimosia ou sobranceria, mas porque havia uma razão para isso. “O livro fala de coisas que me aconteceram numa fase da minha vida em que fui ao fundo e depois tive de renascer das cinzas, evoluir. Quis que o livro acompanhasse essa fase, essa evolução”. E os últimos versos dizem, então, assim: “E quando a lucidez nos vier à boca / em tragos simples, lembremo-nos da morte / e aceleremos dia fora. / Que respiremos as últimas migalhas de enfado / que inventemos desculpas para uma / mão esmagada, com dez beijos nos dedos / e sejamos felizes”.

Recuperando uma expressão já usada no texto, a linguagem da poesia é, então, a que lhe sai com mais naturalidade. Por isso escreve poemas, muitos poemas, é capaz de escrever dez de uma assentada enquanto bebe um café e fuma um cigarro, inspirada por uma frase ou um verso que leu. Às vezes, antes de começar a escrever, abre livros um bocado à toa “só para encher o cérebro com coisas bonitas e ter a noção do que é bom e do que não é”. Às vezes tem a sorte de abrir um de Virginia Woolf, e aí a doutrina é exemplar. Apesar disso, nunca decidiu que ia ser poeta. Até porque muitas vezes escreve poesia porque não tem tempo para escrever de outra forma. Gostava de escrever romances. Tem um na cabeça, parte dele está apenas lá, outra parte está lá e no papel, cerca de 80 páginas, 30 das quais batidas a muito custo. “Essas primeiras páginas foram um pesadelo absoluto, transpirei, acho que até tive febre”. O tema do romance é o cansaço, porque começou a escrevê-lo numa fase em que se sentia muito cansada. Espera vir a terminá-lo. Nós esperamos o mesmo.

2 Comments on Poesia como forma de martelar o mundo

  1. Não conhecia , adorei a sua poesia, tomei contacto com ela pelo Expresso na pagina de economia do do do do Nicolau esse mesmo 🙂 Parabéns Claudia.

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