Os filmes do Sci Doc 2016
Texto: NUNO GALOPIM
“David Attenborough’s Light on Earth”
(Áustria, 2016)
de Martin Dohn, Joe Loncraine e Paul Reddish
Um dos nomes mais “populares” entre os que passaram pela programação da primeira edição do Sci Doc, o inglês David Attenborough junta o seu modo muito característico de contar as histórias do mundo vivo a uma ideia literalmente luminosa… a bioluminescência, ou seja, a luz que alguns organismos produzem por si mesmos… E é precisamente entre uma expressão daquela que será a primeira imagem que esta ideia pode projetar em nós que o filme começa: entre pirilampos.
Apesar de não se tratar de uma produção da BBC – como aquelas que fizeram de David Attenborough um dos maiores divulgadores científicos da história da televisão – o filme segue moldes semelhantes, aliando às capacidades discursivas do protagonista um trabalho cuidado na captação das imagens, para tal tendo mesmo contado com a colaboração de uma câmara capaz de “ver” o que o olhar humano por si não consegue detetar.
E é assim que mergulhamos num mundo povoado por seres luminosos, alguns deles, como os que encontramos em grandes profundidades, perfeitos candidatos a inspirar formas alienígenas para o cinema de ficção científica.
Como produzem luz? E porque produzem luz? E desde quando observamos estes casos? Há por isso relatos antigos, que passam de observações de marinheiros ou pelas páginas da escrita de Júlio Verne, sugerindo situações que o filme confronta com estudos científicos do presente, procurando explicar os mecanismos químicos que geram a luz e as razões pelas quais os seres vivos o fazem…
Mesmo com questões ainda por responder (porque esta é uma matéria ainda a lançar questões), o filme cruza o globo para observar situações em diversas geografias e entre grupos de seres vivos bem distintos entre si. E, apoiado por magníficas imagens, lembra-nos mais uma vez quão diverso, complexo e deslumbrante é o mundo em que habitamos.
PS. Nota curiosa para o jogo de palavras no título, que evoca o histórico “A Vida na Terra” do mesmo Attenborough (em inglês, “Life on Earth”).
“The Chateau of Chambord”
(França, 2015)
de Marc Jamposlky
Entre os muitos castelos que o final da Idade Média e o início do renascimento viu nascer na região do vale do rio Loire, em França, nenhum se compara nem à dimensão nem à complexidade arquitetónica de Chambord. Mandado construir por Francisco I (que curiosamente, e apesar da obsessão por aquele lugar, só ali passou cerca de 70 dias), Chambord é um espaço que até há pouco tempo guardava segredos que só novos estudos (envolvendo trabalhos de arqueologia e de mapeamento digital) permitiram começar a desvendar. Dado que estão dados como perdidos os planos originais do palácio, houve de começar do quase zero para o compreender. E, entre as muitas questões, averiguar quem terá sido afinal o arquiteto que o projetou para o rei que fez chegar os ventos de mudança do renascimento a França há cerca de 500 anos.
Produzido pelo canal Arte, este documentário começa por nos fazer recuar no tempo para, com imagens de reconstituição histórica, dar a conhecer o contexto no qual o edifício recebe ordem para se levantar do chão. Depois, acompanhamos as equipas que o estudaram no presente, para escutar o que o estudo de Chambord lhes revelou.
Começamos por seguir arqueólogos, que observam que havia uma razão pela qual Francisco I ali terá mandado levantar tão imponente palácio no meio de uma região pantanosa frequentemente alagada: havia ali um castelo. Provavelmente um retiro de caça… E as suas fundações moram ainda sob as de Chambord e dos jardins e espelhos de água que o envolvem.
E depois o mistério maior. E da análise da escada central em dupla hélice (uma das jóias da arquitetura renascentista francesa) e dos arranjos das várias estruturas do palácio, inclusivamente as dos apartamentos nos seus diversos pisos, as sugestões apontam a um nome. Que se sabe ter atravessado os Alpes em 1516 com algumas pinturas debaixo do braço (entre elas a Mona Lisa) para se apresentar ao serviço do rei Francisco I, que o recebeu na residência real em Amboise e deu trabalho e proteção até à sua morte. Chamava-se Leonardo da Vinci e, como mostra este filme, a sua assinatura parece bem clara quando olhamos para Chambord de forma atenta a todos os seus detalhes.
“Chernobyl 30 Years After – The Suppressed Disaster”
(Alemanha, 2016)
de Reinhart Brüning
Chamam “sarcófago” à caixa em betão que foi lançada sob o núcleo do reator 4 de Chernobyl, aquele que em 1986 gerou o mais sério acidente alguma vez registado numa central nuclear. 30 anos depois uma equipa de filmagens chega ali para medir o pulso ao estado de saúde de uma região que de transformou no símbolo de tudo o que pode falhar, não necessariamente apenas no plano científico, já que é sobretudo de consequências políticas (e por isso com impacte na região e suas populações) que vive o tutano deste documentário.
À chegada, uma surpresa: um português chefia a instalação de um arco gigante em metal (em várias camadas) que será lançado colocado o “sarcófago”. Com ele temos uma perspetiva de como ainda há questões de segurança em jogo. Agora não sob decisão da URSS, mas da EU, já que Cherbobyl fica na Ucrânia.
E antes de partirmos à auscultação das consequências, três décadas depois, fazemos um mergulho nas entranhas da central, para observar as instalações que não fecharam (apesar de muitas não produzirem energia, mas manterem escalas de funcionários) e, chegando-se o mais perto possível do reator 4, contar depois o que foi o acidente, o secretismo em que foi inicialmente envolto e a consequente evacuação total da população da vizinha ??? e os métodos, de questionável zelo pela saúde dos envolvidos, com que foi limpa e tratada a zona afetada pelo acidente.
Só então caminhamos à descoberta dos efeitos no presente. Da cidade fantasma que ainda ali mora e da floresta em redor onde a devastação é evidente, aos programas de turismo “catástrofe” que ali levam quem queria ver de “perto” o lugar ou a história de um velhote, de quase 90 anos, que originalmente foi evacuado mas que, em, 1993, regressou à sua casa no meio da floresta, vivendo do que cultiva e do peixe que apanha no rio… Aparentemente tem boa saúde. Mas o mesmo não sucedeu com os muitos que perderam a vida nas sequelas que este acidente gerou. Trinta anos depois, em alguns lugares, as medições ainda acusam níveis multo altos de radioatividade. E, dentro do sarcófago, onde estão à vista elétrodos de carvão contaminados, os níveis só regressarão ao “normal” daqui a um milhão de anos. Daí o arco que vai a caminho de o tapar…
“The Himalayas, The Abode of Snow”
(França, 2016)
de Yanick Rose
Muito do documentarismo que nos transporta aos Himalaias costuma acompanhar os feitos de montanhistas, associando sobretudo a dimensão de aventura e de esforço à conquista de zonas que estão fora do alcance habitual da esmagadora maioria das populações humanas. Este filme leva-nos precisamente a esses mesmos lugares. Comporta os mesmos riscos e exigências físicas. Mas procura algo completamente diferente.
Numa altura em que as questões do aquecimento global – cujas manifestações se somam umas atrás das outras – ainda geram um ceticismo que alguns usam para proveito político, é oportuno observar mais uma clara expressão de uma realidade que é do nosso tempo e que terá profundo impacte entre as gerações que se seguirão às nossas.
Outrora vastos, os grandes glaciares dos Himalaias começaram a recuar. Tal como nas regiões polares, as massas de gelo transformam-se em água, aqui formando grandes lagos cujos limites são definidos pelas moreias (rochas que os glaciares vão arrastando sob o gelo e que vai depositando pelo caminho. Pois as moreias, mesmo as dos grandes glaciares, não têm resistência para suster, por vezes, as massas de água que se avolumam, tendo já ocorrido grandes ruturas, com consequentes torrentes devastadoras lançadas sobre os vales em frente, por vezes com estragos significativos em comunidades ali residentes e até com vidas humanas perdidas.
O filme acompanha uma equipa que tenta medir a dimensão destes lagos, observando o recuo dos glaciares e os elementos que esta realidade coloca em jogo. O alerta fica depois lançado, não apenas a nível local (tendo em conta a segurança dos que habitam os vales), mas também a dimensão global que um fenómeno como este naturalmente comporta.
“Lengguru, The Lost World”
(França, 2016)
de Christine Tournadre
Lengguru é um imponente sistema montanhoso calcário com relevo de origem cársica numa zona pouco (ou quase nada) visitada da Nova Guiné. Uma “cidadela”, como às tantas alguém refere no filme. As altas montanhas que se erguem quase junto ao mar criaram em si e no espaço que encerra um domínio que ficou afastado do resto do mundo nos últimos milhões de anos, pelo que a evolução terá ali ou fixado formas que entretanto mudaram noutros lugares ou permitido também as suas adaptações ao ambiente. Coberta por uma selva densa, perfurada por grutas e povoada por lagos e rios que ora brotam ora saem das montanhas, aquele é um lugar que, depois de ver a zona costeira mapeada no século XIX, só em 2010 acolheu uma primeira expedição científica, seguindo agora as câmaras uma segunda, que procura ir além do que essa outra lançou como primeira base de trabalho. Diluindo-se entre os homens e mulheres de ciência, uma equipa de filmagens vai partilhar com eles os desafios e revelações. E assim nasce Lengguru, The Lost World, filme de 90 minutos que é uma produção feita para o canal Arte França.
Tal como nos conta um dos responsáveis pela expedição, aquela é uma zona que levanta perigos. E, como tal, quanto menos tempo ali mantiver as suas equipas melhor… E vão dividir-se em vários grupos, um para explorar os mares em redor, uma para localizar lagos na alta montanha, outra para rumar a um sistema de grutas, uma outra para escalar um pico ainda mais alto. Há biólogos de várias especialidades em todas as equipas, anotando e documentando as surpresas que ali encontram entre insetos, répteis, aves, mamíferos (sim, um canguru que não vai escapar à curiosidade de câmaras que são instaladas em árvores) ou animais marinhos.
As extremas dificuldades de acesso, o clima adverso, as escaladas que colocam cobras ou sanguessugas pelo caminho, a noção de caminhar em terreno desconhecido, são documentadas, tal como os segredos que ali se revelam num verdadeiro “paraíso perdido”. É interessante reparar ainda na dimensão humana do projeto de investigação, já que é da interação das equipas com as escassas populações que vivem em pequenas povoações nos limiares deste sistema de montanhas, que nascem as missões de esforço partilhado e consentido que permitem, que a ciência entre naquele mundo onde as leis em vigor são as ditadas pela natureza.
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