Na China, pelas mãos de um animador
Texto: NUNO GALOPIM
Mais do que um choque de culturas, o relato autobiográfico que Guy Delisle nos deu a ler em Pyongyang – Uma Viagem à Coreia do Norte revelou sobretudo o impacte de um choque de regimes. Confrontado com o quotidiano no país mais fechado do mundo, no qual não conheceu senão uma bolha autorizada aos estrangeiros que ali se deslocam em trabalho, o autor canadiano partiu da experiência que ali viveu por alguns meses num estúdio de animação para nos permitir uma fresta de curiosidade sobre um povo que parece viver numa dimensão alternativa na qual ou a propaganda é tremendamente eficaz ou então o medo tudo molda, não parecendo haver (visíveis, naturalmente) sinais de contestação ao poder e às narrativas que apresenta. Originalmente publicado em 2003, Pyongyang assinalou, há dois anos, o início de um relacionamento da Devir com este autor que, entretanto, se afastou da animação e ganhou visibilidade maior com graphic novels como as que traduzem experiências de reportagem – em Chroniques birmanes (2007) e Chroniques de Jérusalem (2011) – e, mais recentemente, relatando com um incrível sentido de expressão do tempo que passa, a história de um funcionário de uma ONG que viveu meses a fio sobre rapto em S’enfuir. Récit d’un otage (o seu mais recente livro, datado de 2016).
Shenzhen – Uma Viagem na China, faz com o livro dedicado a Pyongyang um díptico com características comuns. Ambos são relatos autobiográficos de temporadas vividas em estúdios de animação na Ásia. Ambos são também incursões de um ocidental em territórios dominados por regimes comunistas. Ambos traduzem o choque de culturas, que Guy Delisle comenta com o humor de quem sabe observar e, depois, comunicar.
Mas ao passo que o livro dedicado a Pyongyang se foca essencialmente no confronto desconfortável com o regime e o quotidiano por si moldado, em Shenzhen encontramos sobretudo sinais de estranheza perante um mundo mais bipolar já que guarda por um lado ecos culturais mais enraizados – as comidas, as diferenças entre campo e cidade, os modos de interagir das pessoas, os dentistas de rua – e um lugar e um tempo em que a presença ocidental se começa a imiscuir no dia a dia de quem ali vive. Vale a pena lembrar que Shenzhen, que na verdade não fica muito longe de Hong Kong (que o livro também visita), foi a primeira zona económica especial da China pelo que, ainda antes das transformações que ocorreram mais recentemente, já ali havia, na aurora do século XXI, sinais de diálogo entre a China tradicional, o regime comunista e o mundo capitalista que ali ia entrando, devagarinho. É entre estes cenários que, com um animador e as suas rotinas de trabalho, viajamos à China nas páginas deste livro.
“Shenzheen – Uma Viagem à China”, de Guy Delisle, com tradução de Paulo Salgado Moreira, é uma edição de 144 com capa cartonada, pela Devir.
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