O regresso de Corto Maltese
Texto: NUNO GALOPIM
O marinheiro que Hugo Pratt transformou em referência maior do universo da nona arte reapareceu, vinte anos após a morte do seu criador, nas mãos de uma dupla espanhola, com texto de Juan Díaz Canales, o mesmo da série Blacksad, e Ruben Pellejero, autor de Historias de Barcelona e de El Silencio de Malka, álbum de 1994 que lhe valeu um prémio em Angoulême. Editado em setembro de 2015, o livro que iniciou uma nova vida para Corto Maltese chega agora finalmente a Portugal, assinalando o começo de um relacionamento editorial desta série com a Arte de Autor.
Sob o Sol da Meia Noite, que reativou a série 23 anos depois da publicação em álbum de Mú, revela uma fidelidade ao cânone, mantendo o protagonista por rotas distantes, pelo seu caminho cruzando-se não só figuras com ligações ao seu passado (e era inevitável um novo encontro com o sociopata Rasputine – que só tem o nome em comum com a figura da história russa), assim como todo um conjunto novo de personagens que não se afastam do tipo de figuras estranhas e extraordinárias que tínhamos encontrado noutras paragens e noutros álbuns. E entre estas há um nativo, oriundo de paragens do grande norte americano que, levado até França, onde é maltratado e humilhado, ali descobre um chamamento revolucionário nos textos de Robspierre. E, de regresso resolve aplicar os ideais jacobinos nas florestas canadianas. Outra das novas figuras é um inuit que devora ao tutano os artigos de revistas científicas… Pela narrativa Corto Maltese cruza-se com uma revolta de prostitutas numa distante cidade a altas latitudes, para onde se dirigiu após ter recebido uma carta deixada pelo amigo Jack London. Sim, o escritor.
No desenho Pellejero procurou encontrar um álbum de Pratt no qual houvesse maior afinidade com o seu traço, daí partindo para a criação da sua forma de abordar o universo e a própria figura de Corto Maltese, mantendo fidelidade ao estilo de découpage dos livros anteriores. E convenhamos que não era fácil o desafio de tocar num mito. De lhe dar nova vida, novas falas, novos traços. Corto Maltese, como o mostra este livro, não é santo de altar. E, de todas da reativações de séries a que o panorama da BD tem assistido, este é talvez o mais promissor dos primeiros novos episódios. Fiquemos por isso atentos aos caminhos do marinheiro possa ainda vir a cruzar…
Os acontecimentos que acompanhamos em Sob o Sol da Meia Noite não correspondem, cronologicamente, ao que aconteceria depois de Mú. Pelo contrário, os autores colocaram a ação mais atrás no tempo. Mais concretamente em 1915, sendo assim contemporânea ao desfecho de A Balada do Mar Salgado (cuja ação começa em 1913), encontrando assim todo um conjunto de referências que vincam a sua vontade em respeitar o cânone.
Não deixa por isso de ser interessante o facto de esta estreia de Corto Maltese no catálogo da Arte de Autor se faça com um par de volumes, sendo o segundo, precisamente, esse clássico que em 1967 nos revelou a figura de Corto Maltese que descobrimos, pela primeira vez, amarrado ao destroço de uma embarcação, à deriva no Pacífico, onde é salvo das águas por… Rasputine… A Balada do Mar Salgado, que nos leva àqueles mares numa trama que exala já as tensões que no ano seguinte se manifestariam com a eclosão da I Guerra Mundial, assegura assim, ao mesmo tempo que encontramos o volume mais recente, o que promete vir a ser um recuperar, de fio a pavio, de uma das mais importantes obras da história da banda desenhada.
A nova edição faz-se, tal como a de Sob o Sol da Meia Noite, num volume de capa cartonada. E respeita o preto e branco da sua versão original. O livro acrescenta aguarelas de Hugo Pratt pelas quais fez estudos de trajes militares ou de povos da região. E inclui um prefácio de Umberto Eco que, entre vários aspetos, sublinha os gostos literários das personagens de Hugo Pratt, reparando a forma discreta, mas concreta, como ali vemos referências a Melville, Rilke ou Shelley… Coisas de boa banda desenhada…
“A Balada do Mar Salgado”, de Hugo Pratt, com tradução de Paula Caetano, está disponível numa edição de 183 páginas em capa dura, pela Arte de Autor.
“Sob o Sol da Meia Noite”, de Juan Díaz Canales e Rubén Pellejero, com tradução de Ricardo Pereira, está disponível numa edição de 82 páginas em capa dura, pela Arte de Autor.
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