O outro lado existe
Texto: NUNO GALOPIM
Com as recentes feridas da guerra ainda longe de cicatrizadas e a tensão da emergente guerra fria a fermentar de ambos os lados um escritor norte-americano e um fotógrafo de origem húngara (com nome “americanizado” numa altura em que começara a procurar trabalho em Paris) fazem as malas e partem para a então URSS. O seu objetivo não é o de escutar o poder nem auscultar as figuras de topo do aparelho de estado, mas, antes, observar, pela escrita e pelas imagens, o quotidiano dos anónimos. Cedo descobrem que os filtros impostos pelo regime são pesados e intransponíveis. E, mesmo com autorização concedida para viajar e fazer as desejadas reportagens, depois de chegados a Moscovo, são obrigados a esperar pela luz verde para tudo e mais alguma coisa. Mas mesmo ali, e enquanto não recebem ordem para avançar para os outros lugares que desejavam viajar e para os espaços que sonhavam descrever e fotografar, o espírito observador de John Steinbeck começa a registar as pessoas, os comportamentos, as palavras, as opiniões… A seu lado, muitas vezes sob um manto de frustração, Robert Capa viveu dias de objetiva tapada, nem sempre lhe sendo dada ordem para fotografar. Ordem vigiada já que uma companhia atenta lhes foi imposta, nascendo a figura à qual chamariam o ‘gremlin’ (do Kremlin).
Na verdade o soberbo relato de Steinbeck começa ainda nos EUA, com a torrente de frases ensopadas em ignorância e medo que escutou antes de partir. “Descobrimos que havia milhares de pessoas que sofriam de moscovite aguda – um estado que permite acreditar em qualquer absurdo e recusar qualquer facto”. Mas, sublinhando os contrastes que o texto tão bem documenta, logo acrescenta: “É claro que viemos a verificar mais tarde que os russos sofrem de washingtonite, que é a mesma doença. Descobrimos que, da mesma forma que nós imaginamos os russos com cornos e cauda, também para eles nós temos cornos e cauda”. E depois a conclusão, que deixa no ar perturbante ressonância com o nosso presente em 2018: “Parece-nos que a tendência mais perigosa do mundo é o desejo de acreditar em boatos em vez de exigir factos”. Curioso, não é? Para uma frase de 1948…
Entre os contrastes que Steinbeck observa haver entre os EUA e a URSS na alvorada da Guerra Fria estava o papel do escritor perante a sociedade e os respetivos regimes. Estaline, como recorda, “disse que os escritores são os arquitetos da alma humana”. Isto num regime que, naturalmente, zelava sobre que palavras eram usadas pelos escritores. Steinbeck explica então aos interlocutores desse momento que descreve que, num sentido bem diferente, nos EUA “os escritores são considerados logo abaixo dos acrobatas e logo acima das focas”, sublinhando que acha que “é bom que assim seja”. Por duas razões. Uma delas o perigo da adulação, sobretudo perante um escritor ainda jovem. E, depois, pelo papel que a escrita tem na sociedade: “Os russos estão ensinados, treinados e estimulados a acreditar que o seu governo é bom, que tudo nele é bom, e que a sua função é darem-lhe força, apoiarem-no de todas as formas possíveis. Pelo contrário, o sentimento profundo entre os americanos e os britânicos é que todo e qualquer governo tem um lado perigoso, que deve haver tão pouco governo quanto possível, que qualquer reforço do poder do governo é mau, e que o governo deve ser constantemente vigiado e criticado, para se manter atento e ativo”.
É só depois dos primeiros encontros entre círculos intelectuais moscovitas e de dias e noites passados entre os demais estrangeiros ali residentes que, como desejado, Steinbeck e Capa começaram a ver e ouvir os cidadãos anónimos da URSS. Primeiro em Moscovo, depois em Kiev e numa zona rural perto da capital ucraniana, mais adiante em Estalinegrado (hoje Volgogrado) e, depois, na Geórgia que, ao contrário das outras áreas visitadas, as marcas da guerra não se tinham feito sentir. Apesar de acompanhados e vigiados e de terem contactado com as populações que o aparelho de propaganda certamente permitiu, o escritor e o fotógrafo acabaram por mergulhar no quotidiano daqueles lugares. Foram convidados para repastos sem fim e, pelas páginas, apanhamos valentes barrigadas de sabores. Entramos em casas, sobretudo em meios rurais. Observamos velhos e novos. E, a dada altura, Steinbeck repara que “foi interessante encontrar nas atitudes dos jovens da União Soviética atitudes dos (…) grupos mais conservadores e antiquados”, usando como comparação o universo americano.
A capa da edição original do livro, em 1948
Num outro momento salienta que “quem visita uma cidade americana é lavado a visitar a Câmara do Comércio, o novo tribunal, a piscina e o arsenal” e “quem visita a Rússia é levado a visitar o museu e o parque de cultura e lazer”, que “há em todas as cidades”. Não deixando de notar que em todos esses parques não falta iconografia ligada aos líderes e heróis da revolução.
Apesar dos filtros impostos, e do pavor que Capa terá vivido quando, em vésperas de regressar, lhe pediram os negativos todos, devolvendo-os em caixa selada que só poderia abrir depois de passar a fronteira, o conjunto de quadros que lemos, 70 anos depois, não deixam de ser tanto um conjunto de retratos de época como expressões de uma maneira de ser que, na verdade, parece inscrita no DNA de um povo. A dada altura Steinbeck lê uma série de frases sobre a relação da Rússia com os estrangeiros que parece ajustar-se que nem uma luva ao que ali tinha estado a viver: “os russos desconfiam muito dos estrangeiros. (…) É destacado um guarda para seguir cada estrangeiro. (…) Qualquer mensagem enviada a um membro do governo fica normalmente sem resposta, e uma segunda mensagem fica igualmente sem resposta. Se uma pessoa insiste é-lhe dito que o funcionário está fora da cidade ou está doente. (…) Os estrangeiros só estão autorizados a viajar pela Rússia depois de vencerem muitos obstáculos (…)… Pareciam ecos do que tinham acabado de observar… Mas, este, era um texto de 1634!
“Um Diário Russo”, de John Steinbeck, com fotografias de Robert Capa, com tradução de Francisco Agarez, está publicado num volume de 237 páginas pelos Livros do Brasil.
PS. Para sublinhar esta ideia de jogos de contrastes, nada como ler, depois Viagens com o Charley, um livro de estrada, pelos EUA, que John Steinbeck publicou em 1962.
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